Sobre Relógios e Átomos – Parte 3

Com tantas formas de marcar o tempo e datar eventos, objetos, restos de seres vivos e rochas, ainda assim há quem “duvide” desses dados. Como as datações feitas pela ciência costumam destruir as afirmações da crença, é sempre difícil para quem crê aceitar essas informações.

Assim, seria interessante se houvesse uma forma de “datar” seres vivos a partir de sua própria natureza, algo “dentro” deles que permitissem saber quando uma espécie se separou de outra, há quanto tempo, qual a distância em termos de parentesco, etc.

E existe. Não seria necessário, mas existe, devido à forma como a evolução se dá e ao sistema de informação dentro de cada célula, o DNA.

Mutações

Para entender como o relógio molecular funciona é preciso se aprofundar um pouco em um dos processos que compõem a evolução, as mutações nos genes/DNA (os outros dois pontos principais são a herança de caracteres e a pressão seletiva). Como tudo em ciência, tudo em relação ao conhecimento científico, cada parte se apoia em um conhecimento anterior, uma base sólida para conclusões. Nesse caso, o relógio molecular se apoia em características que descobrimos nas mutações, e entender as mutações é o primeiro passo.

Muita gente, especialmente leigos, parece pensar que os genes contêm “instruções” para construir “coisas”, como olhos, coração, pele, ossos, etc. Como se um gene para olho castanho tivesse contido nele as instruções para essa cor de olho. Mais claramente, seria como se fosse possível “ler” em determinado trecho do DNA as instruções de construção de um determinado órgão ou estrutura. Isso é conhecido como “metáfora da planta arquitetônica” (blueprint).

Mas os genes não têm esse tipo de informação. Eles são mais como uma “receita de bolo”, e não se pode dizer o que um gene faz apenas por sua leitura. No caso de uma planta de casa, é possível construir uma casa a partir dela, ou desenhar a planta apenas estudando a casa já construída. Mas não se pode “reconstruir” a receita de um bolo a partir do bolo já feito.

Nem mesmo a metáfora da receita de bolo é perfeita, ou totalmente adequada. A informação contida no gene não se traduz diretamente em um órgão, ou em informação para se construir um órgão (e isso confunde muito os criacionistas defensores do DI, que parecem lidar com o conceito de informação de forma literal), mas simplesmente em produção desta ou daquela proteína.

São estas proteínas, aminoácidos, que, em determinadas circunstâncias, afetam o crescimento e resultam em órgãos, tecidos, estruturas.

Como?

Vejamos uma sequência de DNA que representa um determinado gene, o que é responsável pelo Citocromo C:

CTTCATGTCGTGCAGATCGATCGCTAGC
AGCGGACTTTCGCTAGCAATCGATCTCG
TGTCGTGCAGATCGATCGCTAGCTAGCT
ATCGCTAGCTAGCTTTCTAGCTACGAGC
TAGCTTTCGCTAGCAATCGATCTTAGCT
TGTCGTGCAGATCGATCGCTAGCTAGCT
ATCGCTAGCTAGCTTTCTAGCTACGAGC
TAGCTTTCGCTAGCAATCGATCTTAGCT

Este não é a sequência correta, apenas algo para ilustrar a ideia de mutação. Esta sequência de bases, A, C, G e T permitem a construção de proteínas que resultarão no Citocromo C.

Mutações seriam alterações em algumas das “letras” dessa sequência, de forma aleatória e não intencional. Qualquer alteração, qualquer letra. Uma alteração que resulte em uma mudança positiva será mantida, se negativa, excluída. Atenção, a alteração não afeta o indivíduo ou a característica fenotípica, ou órgão ou estrutura diretamente, afeta apenas a construção, transcrição, da proteína relacionada!

O sistema, como seria de se esperar, é muito complexo, e deve se manter o mais estável (resistente a mudanças) possível, uma vez que a maioria das mudanças que não são neutras (apesar da maioria das mutações ser neutra, no global) serão para pior (ver mais dados no link http://www.talkorigins.org/indexcc/CB/CB101.html) – há mais formas de estragar que de melhorar. Muitos mecanismos de controle e validação existem na replicação do DNA, para garantir isso.

Também não deve ser “perfeito”, ou não haveria mutações e nem evolução.

Entretanto nem toda mutação tem efeito mensurável, daninho ou benéfico. Existem muitas que simplesmente não afetam em nada o ser vivo portador da mesma. Isso se aplica a diferentes trechos e mecanismos do DNA. Primeiro, existem longos trechos de DNA/lixo (que não é realmente lixo em muitos casos, cuidado com as metáforas), trechos de DNA redundante, ou que já não tem mais transcrição, ou estas não afetam mais o organismo.

O mais importante para o relógio molecular são os genes neutros. Observe o trecho em destaque na sequência do Citocromo C acima. Ele está em vermelho e apresenta as letras CGA. Este trecho codifica o aminoácido Glicina, ou seja, o trecho “constrói” esse aminoácido ao ser lido pelo sistema decodificador.

Mas o código genético é chamado de “degenerado” por ter mais de uma forma de construir o mesmo aminoácido. Neste caso, se uma mutação afetar o trecho CGA e o modificar para GGG, GGC ou GGU, o mesmo aminoácido glicina será construído. A versão “mutante” do gene tem o mesmo efeito do gene original.

Usando um exemplo de Dawkins, pense nas palavras “canguru” e “CANGURU”. São diferentes, mas ambas significam, resultam, na mesma coisa, no mesmo animal saltador australiano.

Assim é possível que uma mutação ocorra, sem afetar o portador, e isso pode ser detectado, e comparado com outros genes, de forma a determinar como se relacionam. Este trecho a seguir é do livro de Richard Dawkins, O Rio que Saía do Eden:

O “parágrafo” nos nossos genes que descreve a proteína chamada citocromo C tem 339 letras. Doze trocas de letras separam o citocromo C humano do citocromo C dos cavalos, nossos primos muito distantes. Apenas uma troca de letra no citocromo C separa os humanos dos macacos (nossos primos bastante próximos), uma troca de letra separa os cavalos dos jumentos (seus primos muito próximos) e três trocas de letras separam os cavalos dos porcos (seus primos um tanto mais distantes). Quarenta e cinco trocas de letra separam os humanos do levedo e o mesmo número separa os porcos do levedo. Não é surpresa que estes números sejam os mesmos, pois, à medida que subimos o rio que conduz aos humanos, ele reúne-se ao rio que conduz aos porcos muito antes de o rio comum a humanos e porcos se juntar ao rio que conduz ao levedo.”

Danger, danger, como diria o robô de Perdidos no Espaço..:-) Não são estas diferenças no citocromo C as responsáveis pelas diferenças entre as espécies que as apresentam, por favor! Estas diferenças são neutras, não afetam o citocromo C, sua síntese ou função (o citocromo C é peça fundamental para os processos celulares, o que o torna muito resistente a mutações deletérias, sob pena de matar a célula onde reside, e o ser vivo no processo).

São mudanças neutras, que serão mais bem entendidas a seguir.

Isso torna muito mais fácil determinar o parentesco entre espécies, e essa análise comparativa tem sido feita com diversos seres vivos, sempre com grande precisão e sempre se adequando ao que esperaríamos encontrar, a partir de outras fontes de dados e informação.

Mas ainda não é tudo, e chegamos ao relógio molecular. Além de saber a relação entre espécies, é possível saber em que momento, há quanto tempo, a separação se deu.

Separados

Pelas eras geológicas as mutações positivas se acumulam, as negativas são eliminadas, mas as mutações simplesmente neutras ficam por lá, impunes, despercebidas, sem efeito, sem serem detectadas pela seleção natural, pela pressão seletiva.

Isso causa um efeito interessante: a velocidade da evolução, ou seja, do favorecimento das mutações positivas, e eliminação das mutações negativas, varia. Por serem “detectáveis” pela pressão seletiva, sua velocidade é afetada pelo ambiente, pelas mudanças, pela velocidade das mudanças.

Se o meio ambiente passa por um período de tranquilidade, estabilidade, as pressões são menores, para espécies bem adaptadas, e a velocidade da evolução é lenta. Se o ambiente muda, fica instável (como uma glaciação), a velocidade da evolução é maior, mais rápida, e as mutações se acumulam mais rapidamente.

Mas para as mutações neutras, não importa. O meio ambiente, as pressões, não as afetam. Sua ocorrência ou eliminação não se baseia em nada mais que a natureza dos mecanismos de replicação e seus sistemas de segurança contra erros de cópia.

Isso permitiu que fosse possível medir a taxa de mutação neutra em diversos genes e trechos de DNA, de forma que se pudesse determinar o tempo decorrido desde cada mudança.

É preciso mais um conceito importante para entender o relógio molecular, um termo técnico chamado “fixação”. Voltando ao aminoácido glicina, que tem 4 formas de ser codificado, suponha que uma espécie use como padrão a forma GGG para codificá-lo. Em algum momento uma mutação troca uma letra, e um indivíduo dessa espécie passa a apresentar a forma GGC. Nada muda, e ele viverá como todos os outros, e terá filhos, descendentes, como todos. Que herdarão essa mutação neutra, e assim por diante.

Isso vai se espalhar pelo pool genético, e pode acidentalmente se tornar o padrão. Nesse ponto se diz que a mutação está “fixada”.

Genes fixados definem uma espécie, e o relógio molecular permite, pela análise dos que se fixaram em uma espécie, com os que se fixaram em outra espécie, há quanto tempo estas se separaram.

Assim como em datação por “relógios radioativos” (datação radiométrica), temos diferentes genes, funcionando como diferentes relógios moleculares, com diferentes “taxas de decaimento”, e podemos “calibrar” uns com os outros (além de calibrar com os “relógios radioativos”, dendrocronologia, etc, etc). Genes da histona permitem determinar mudanças a cada milhão de anos. O Citocromo C e a hemoglobina têm taxas intermediárias, que permitem determinar mudanças entre milhões, há dezenas de milhões de anos, e assim por diante. Para os fibrinopeptídeos (utilizados na coagulação do sangue) a taxa de mutação é de cerca de uma mutação a cada 600 mil anos.

Sempre, claro, calibrados com outras formas de datação e validação, para maior segurança e confiabilidade. Fatores de correção, com em tudo em ciência, são aplicados a cada mecanismo, a cada leitura dos relógios moleculares. E confirmação independente, testes cegos, etc, etc.

Além de genes neutros, existem os pseudogenes, que também são usados como marcadores de datação, embora em menor escala. Pseudogenes são estruturas que em algum momento fizeram algum trabalho no organismo, útil, mas agora já não tem mais função, não são mais transcritos. Poderiam ser eliminados do DNA (algumas experiências em laboratório eliminaram pseudogenes de algumas espécies, para ver qual o mínimo de DNA seria necessário) sem afetar os indivíduos ou o bem estar do ser vivo.

É uma versão “aposentada” de um gene ancestral (um embaraço permanente para criacionistas..:-), que serve apenas para nos ajudar a entender a origem e a evolução de uma espécie.

Um marcador que tem apresentado excelente capacidade de datação é o DNA mitocondrial humano, que nos deu informações importantes sobre nosso passado evolutivo, e todo mundo já deve ter ouvido falar da “Eva mitocondrial” a esta altura.

Todos os dias, em todo mundo, novos conhecimentos, novas ferramentas, novas tecnologias, nos ajudam a entender melhor nosso mundo, nosso passado, nossa origem e a responder nossas mais importantes perguntas. Sempre baseado em conhecimento confiável, seguro, científico.

Como diria o Sr. Spok, é fascinante.:-)

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Para saber mais:

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