A ciência sabe/pensa que sabe tudo?

Você pensa que:

A ciência é a única forma de produzir conhecimento?
A ciência sabe tudo?
A ciência pode responder todas as questões?
Um cientista comum

Essas questões são constantes em minhas conversas sobre ciência, conhecimento científico, método científico. Elas surgem em diferentes momentos mas sempre surgem. O motivo quase sempre é uma incompreensão sobre o que é ciência e quase sempre derivado de uma percepção incorreta da mesma.

Mas a resposta para as 3 questões é sempre não. E sabemos disso, e não há problema algum em reconhecer isso. Apenas não afeta a ciência nem seus resultados ou confiabilidade. Ela continua sendo uma ferramenta confiável, a mais confiável que criamos para entender o Universo em que vivemos.

A ciência é a única forma de produzir conhecimento?

Não. Mas o termo conhecimento é amplo, vago, tem escopo e alcance diversos, e assim como teoria e teoria científica são coisas diferentes, conhecimento e conhecimento científico também são.

A ciência é a forma de produzir conhecimento científico (uma tautologia). Este se aplica ao Universo material, concreto, objetivo. Se quisermos saber do que são feitas estrelas, é a ferramenta a ser usada, que dará respostas mais confiáveis, mais verdadeiras, no sentido de próximas a realidade. E sim, não há outra forma conhecida de produzir esse conhecimento sobre estrelas.

Outras formas de conhecimento, outros usos do termo, podem ter outras modos de serem produzidas. Mas, diferente da ciência, seus resultados serão vagos, e quase sempre baseados em crença e escolhas pessoais. Uma pessoa escolhe esta resposta ou conclusão, a outra escolhe uma diferente, e nenhuma pode ser demonstrada mais verdadeira que a outra.

Tudo que alguém sabe é um conhecimento. Não necessariamente um conhecimento científico e não necessariamente um conhecimento real, mas conhecimento.

Astrologia por exemplo. Ou crenças religiosas. Ou psicanalise (este é um vespeiro enorme, espero não ser cancelado). Há uma diversidade de astrologias, e mesmo dentro de uma versão há diferenças e resultados conflitantes. Mas só se pode aceitar um deles e ignorar os outros, não é um conhecimento que se possa validar além das regras do próprio sistema. Quando se tenta, por exemplo comparando em estudos controlados previsões, alegações e resultados, com a vida das pessoas, não funciona. Isso não impede que quem defende essa forma de conhecimento continuar a acreditar nele, mas afeta a confiabilidade do mesmo para terceiros.

A ciência não é a única forma de produzir conhecimento, mas é a única que produz conhecimento de forma confiável sobre o Universo material, sobre a realidade deste. Não conheço outra que possa determinar como uma doença age, do que estrelas são feitas, qual a natureza da matéria, nem que possa a partir desse conhecimento produzir tecnologia e avanços na medicina, física, química etc. E em nenhum dos debates ou conversas informais alguém me apresentou algo remotamente seguro e confiável como a ciência.

Aqui um aparte, isso não significa perfeição, que a ciência não erra, não se engane, não tenha de ser revista ou ajustada, e sempre desafiada para melhorar. Pelo contrário, sabemos que tudo humano é falho, tende ao viés, permite enganos, e fraudes, e boa parte dos protocolos do método existem, foram criados, para controlar e minorar essas tendencias.

A ciência tem algo raro entre as coisas que seres humanos criam, uma forte tendência a aprender com seus erros. Uma frase atribuída a Feynman (provavelmente não é dele), diz que se não está errando ao fazer ciência, está fazendo isso errado. Muito do conhecimento que produzimos dessa forma, científica, resulta de erros. Se hoje temos esse enorme, rígido, rigoroso, esforço nos protocolos de segurança antes de permitir um novo medicamento ou tratamento, se estamos todos discutindo a segurança das vacinas para o Covid-19, é por causa de coisas como a Talidomida, e bem antes, as primeiras transfusões de sangue, feitas antes do conhecimento, científico, sobre antígenos.

A ciência lida com o natural. Algumas pessoas acreditam no sobrenatural, outras, como eu, não acreditam, não veem evidência de existência do sobrenatural. Então das formas de produzir conhecimento sobre o natural, o Universo material, é esperado que demos preferência a ciência e sua confiabilidade nessa questão. A respeito do sobrenatural, que a ciência não tem como validar ou produzir conhecimento sobre, também não acreditamos que algo mais tenha.

Mas não quer dizer que essas outras formas de produzir conhecimento sobre o sobrenatural não existam, apenas que são várias, conflitantes, não confiáveis como respostas ou conclusões.

A ciência sabe tudo?

Certamente não. Se soubesse, nem haveria mais necessidade de ciência, de fazer ciência, de pesquisas, de laboratórios, de estudos etc. A ciência, o conhecimento científico, é um conjunto de dados e conclusões que ainda está crescendo e ampliando. A ficção científica mostra cenários futuros onde sabemos bem mais do que agora.

Então porque essa alegação, que a ciência pensa saber tudo, aparece tão constantemente nas conversas? Porque embora ela não saiba tudo, a parte que ela sabe, hoje, é significativa, confiável, demonstrável, e compreende boa parte das questões mais ignoradas pelo leigo, pelo cidadão comum.

Quando uma conversa sobre ciência começa, é comum desafios como “mas então como você/a ciência explica isso?”. E eu tento explicar o que sabemos sobre a questão apresentada, que é em geral uma questão respondida pela ciência, já a algum tempo, mas que as pessoas não tem conhecimento. Em seguida, a contragosto, novo desafio e nova resposta. Não porque a ciência “sabe tudo”, mas porque ela sabe a maior parte sobre essas dúvidas comuns das pessoas.

A maior parte das teorias científicas explica essas dúvidas, mas não chegam ao público, ao cidadão comum, pelo menos não de forma inteligível, que um leigo possa entender. É fácil acabar duvidando dessas “coisas confusas que cientistas dizem”. Assim, quando tento explicar de forma que se possa entender, cada dúvida/desafio, acaba criando a impressão que posso seguir assim indefinidamente, explicando tudo, e que a ciência “sabe tudo”. Não sabe. Mas a parte que sabe, é sensacional e confiável.

A ciência pode responder a todas as questões?

Não. Não acho que possa. Tem quem ache que sim, que com o tempo teremos todas as respostas. Mas penso que algumas questões apenas não tem respostas. Outras podem estar além de nossa capacidade cognitiva. Talvez outros milhões de anos nos levem a ampliar essa capacidade (se não for uma limitação física/biológica) mas não sei se as pessoas dessa época possam ser chamadas de “nós”.

Mas a parte que me interessa é, se a ciência não pode responder algo, outra coisa, outra forma de produzir conhecimento, respostas, conclusões, poderia?

Nada indica isso. Não consigo ver uma forma de descobrir do que são feitas as estrelas sem ser pela ciência. E ninguém nunca me propôs uma alternativa minimamente razoável.

Mas e as questões não materiais, não naturais, sobrenaturais ou subjetivas?

Muitos parecem pensar que sim, que são “ministérios não interferentes”, como Jay Gould. Eu discordo, e me parece uma tentativa de apenas empurrar a discussão para debaixo do tapete e evitar conflitos intermináveis.

Quando eu penso em “respostas”, em algo respondendo a uma questão, problema, algo produzindo um conhecimento, eu penso que esta deva ser confiável, verdadeira, no sentido de ser real ou próxima do real. Se entre os ministérios não interferentes, digamos a fé religiosa, cada vertente dá uma resposta, produz um “conhecimento” diferente ou conflitante, como podemos chamar isso de “conhecimento confiável” ou de “resposta”?

De onde viemos, para onde vamos, qual o sentido de nossas vidas, por que estamos aqui? São perguntas legítimas, e provavelmente a ciência não possa dar respostas, ou pelo menos respostas que agradem que as procura. A ciência pode dizer que não há evidências que tenhamos “vindo” de algum lugar, ou que não existe, não precisa existir um sentido maior para a vida. Mas essa alegação para nesse ponto. Ela, a ciência, não pode dizer que “não existe um ser sobrenatural que tem um propósito para cada pessoa” porque isso está além do Universo material, além da realidade natural. Ela pode dizer apenas que não existem evidências disso.

Mas quem pode? A religião pode? A Astrologia? O I-Ching? Quem pode, o que pode? Os que alegam poder discordam de tantas coisas, e alegam coisas tão diferentes, que fica complicado adotar uma delas como “confiável”, além da crença pessoal. Sim, podemos chamar de conhecimento, no sentido amplo e um tanto vago, mas não é o que eu chamaria de resposta confiável.

Se eu perguntar para onde vamos a um padre católico ele vai me explicar, a partir de seu conhecimento sobre essa questão, que vou para o paraíso ou para o inferno, dependendo do que eu fiz nesta vida. Uma única vida e só. Me parece um tanto injusto avaliar as almas dessa forma, as condições que me tornaram uma boa pessoa são únicas, não sei como eu seria se nascido de mãe alcóolatra e pai abusivo por exemplo.

Então pergunto a um espírita, e a resposta dele é outra, vou para outro plano viver de novo, e de novo, até evoluir o suficiente para ir ao Spa que é a vida no paraíso espírita, todo mundo de branco cantando e conversando com seus antepassados. Milhões deles.

Essa resposta, embora mais confortante, ainda me parece insatisfatória. Creditar a dor e sofrimento das pessoas, um câncer, a perda de um filho, como “castigo/aprendizado” por erros cometidos em vida anterior, dos quais não me lembro, é um tanto sem sentido, e cruel. Um ser benigno e onipotente encontraria uma forma menos primitiva de validar almas.

Procuro um budista. Bem, um deles, há uma diversidade de budismos também mas em geral a resposta é que renascemos diversas vezes até atingir a iluminação, que é a absoluta falta de desejos e emoções. Nesse estado de iluminação, minha mente se fundirá e desaparecerá no Nirvana, a mente cósmica.

Ok, mais interessante, ainda que nenhuma evidência disso exista. Mas o que difere esse final, desaparecer ao se fundir a mente cósmica, perder identidade, memória, sentimentos, tudo, de apenas morrer? Como ateu, eu penso que para onde vou, é o mesmo lugar onde estava antes de nascer, lugar algum. Vai ser como dormir, perder a consciência, mas definitivamente (e isso me parece agradável), e se juntar a mente cósmica sem nenhuma lembrança ou sentimento, é o mesmo que morrer. Eu sou minha memória, meus sentimentos, minha forma de pensar, e sem isso, não sou mais eu, e não importa se a “energia” que fui continua a existir.

Na verdade, é como morrer e meus átomos voltarem ao Universo para novos ciclos, como uma estrela que se torna supernova. E acho mais poético e mais bonito dessa forma.

O que tento dizer é que chamar de “resposta” o que descobrimos sobre a natureza do átomo, a constituição de uma estrela, a origem das espécies, a causa de doenças, é uma coisa. Chamar a explicação dada por outra forma de produzir conhecimento de resposta é algo um tanto diferente e o termo passa a ter outro sentido.

Não, a ciência não pode responder todas as questões. Algumas que ela não pode, questões sobre ética por exemplo (talvez, tenho minhas dúvidas que não possa) ela pode ajudar a determinar as bases de discussão (se uma mórula não tem sistema nervoso, ela pode determinar isso, e determinar que não há dor ou mente presentes), ou em diretrizes concretas.

Ela não pode dizer se devemos ser vegetarianos ou não, mas pode dizer que se nos tornarmos, será preciso repor elementos e controlar este ou aquele aspecto do metabolismo e nutrição.

Mas o que ela não pode responder, outros mecanismos também não podem, ou podem mas sem que sejam respostas confiáveis ou demonstráveis. Será sempre uma escolha, crença etc, ainda que possa ser tomada de forma mais racional ou mais emotiva.

Terminando com o alerta básico, este artigo não é a verdade verdadeira, sugestões, críticas e mesmo refutações são bem-vindas, apenas peço a gentiliza de evitar ofensas, xingamentos, ad hominens e falácias em geral.

Homero

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A Relatividade do Errado (ateus.net)

Magistérios Não Interferentes _ Wikipédia
Non-overlapping magisteria – Wikipedia

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(2) Do que são feitas as estrelas? – Série Ferramentas da Astronomia – YouTube

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