Cloroquina, Ivermectina, Óleo de Cobra e o Covid -19

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Um médico, um bom médico, que se informa, acompanha as novas descobertas em sua área, e tratou muitos pacientes ao longo dos anos, acha que percebeu algo interessante em sua prática.

Especialista em tratar pacientes com uma condição A, ele pensa ter notado que um medicamento para essa condição melhorou também uma condição não relacionada, B. Por anos ele encontrou alguns pacientes com ambas as condições, e pelo que pode lembrar, e anotou em seus registros, esta melhorou nestes pacientes.

Isso não é incomum, a descoberta de efeitos de uma droga em condição não relacionada, as vezes similar, as vezes em efeitos colaterais da condição inicial, e este medicamento passa a ser utilizado de mais uma forma.

Mais erros que acertos, até acertar de vez

Dessa vez não deu certo 🙂

Mas embora aconteça, é muito mais comum que não. Que o que parece ser uma relação de causa e efeito seja um engano de percepção, um efeito não relacionado ou um viés pessoal. Para determinar isso com segurança é preciso prosseguir na investigação e isso é feito a partir de um método, o método científico.

O médico que percebeu um provável efeito, de um medicamento já bem estabelecido para tratar a condição A que parece ser eficaz em uma condição B, procura informação com colegas e em estudos anteriores. Se ele depois disso ainda estiver convencido da realidade do efeito, deve preparar ou encontrar quem se disponha a preparar, um estudo de validação, com protocolos de pesquisa, rigor, e todos os mecanismos necessários para dar confiabilidade aos resultados que encontrar.

Por exemplo, o estudo deve envolver um grupo homogêneo de pacientes, para limitar as variáveis e poder ter confiança que foi o medicamento o responsável por qualquer efeito. Para entender pense em um estudo que determina se um medicamento ajuda na recuperação muscular, mas que junta no grupo de estudo pessoas bem idosas e jovens atletas. Será mais difícil dizer se é o medicamento ou o metabolismo o responsável por qualquer melhora ou piora.

Além do grupo homogêneo que vai receber o medicamento e ser acompanhado em seus efeitos, é preciso saber qual a taxa de regressão natural da condição e dessa forma um grupo de mesmo tamanho e igualmente idêntico deve ser acompanhado, sem receber a nova droga a ser testada. Isso ajuda a determinar se o medicamente tem efeito real, pois se o grupo de controle de 100 pessoas, tiver 20 melhoras, e o grupo que tomou o medicamento tiver também 20 melhoras, temos uma indicação de que ele não tem um efeito real.

Mas sabemos, depois de muitos estudos, por séculos, que tratar alguém com qualquer coisa, até atenção e canja de galinha, faz as pessoas relatarem melhoras, suportarem mais a dor etc. Então é preciso mais um grupo, de controle, que vai tomar um placebo, seja criado. Um medicamento que não é real, apenas parece ser idêntico a droga a ser testada, e este grupo deve apresentar ligeira melhora em relação ao grupo de controle que não tomou nada.

O grupo que toma a droga real precisa ter melhora, um efeito positivo, maior que o do grupo de controle sem nada e do que tomou placebo.

Pronto!

Não, na verdade não.

Também aprendemos ao longo do tempo e pesquisas que “saber” que se toma uma droga ou um placebo muda a percepção. E mais, sabemos que se o médico ou pesquisador sabe quem toma medicamento ou placebo isso afeta os resultados. Psicologia é um fator importante nas reações humanas, e um médico que sabe quem toma seu medicamento, e espera que seja eficaz, pode, sem perceber, dar mais atenção a estes, visitar mais vezes, e dar pistas que tornam inválido ou pouco confiáveis os resultados.

Um protocolo chamado “duplo cego” deve ser implementado, e quem aplica a pesquisa, os medicamentos, tudo, não pode saber o que está dando a cada paciente, e os pacientes não podem saber se tomam o medicamento real ou o placebo sem efeito.

Com tudo isso, e muito mais, já que não dá para explicar todos os protocolos de rigor de estudos científicos em um texto curto (os autores levam meses, anos, preparando seus protocolos e o resultado são calhamaços de dados, controles, mecanismos etc), temos um estudo científico que vai ajudar a determinar se a droga comumente utilizada para tratar a condição A também tem efeito no tratamento de B.

Ajudar. Não determinar. Se este estudo encontrar um efeito, digamos que no grupo de controle sem medicação uma melhora de 10 pacientes em 100, no grupo de placebo uma melhora de 15 em 100 e no grupo que tomou a droga testada uma melhora de 50 em 100, ele será um bom indício de eficácia. Mas não basta.

Alguns outros elementos precisam ser aplicados, como o peer review. É preciso que especialistas não relacionados ao estudo analisem e critiquem o mesmo. Eles podem encontrar falhas, erros, protocolos não aplicados, e mais uma variedade de problemas como número de pacientes insuficiente para análise (em cada caso esse número varia), falhas de segurança no duplo cego etc. Se UM paciente descobriu que toma placebo ou o medicamento, ou um pesquisador, todo estudo é invalidado.

Se algo for encontrado, uma falha grave, o estudo será recusado para publicação. Se for algo menos grave, alguns protocolos podem ter de ser refeitos com mais rigor e reapresentado o estudo.

Então, se tudo estiver correto, o estudo será publicado em revista científica indexada (e explicar isso é todo um outro texto longo).

Pronto!

Não, ainda não.

Sinto, mas é assim mesmo, dá trabalho, leva tempo, as vezes anos 20 anos para uma nova droga contra câncer por exemplo, mas é a forma mais segura de termos confiança nesse conhecimento.

Agora, com um estudo indicando um efeito aparentemente real, ele precisa ser replicado. Ou seja, feito novamente, por outro pesquisador ou outro grupo, mais de uma vez. Porque estatisticamente pode ter sido um resultado by chance, por coincidência.

Mas se todos os protocolos foram seguidos, como isso poderia ocorrer? Seria improvável, sim, mas improvável e impossível são coisas distintas.

Definição de acaso – Meu Dicionário

Se 20 em cada 100 pessoas se cura sozinho da condição B, isso não significa que em cada 100 que acompanhamos 20 melhoram. É estatística, não uma obrigação numérica. Se separarmos 1000 pessoas em grupos de 100, não teremos 20 em cada, mas 30 em um, 10 em outro, 0 em um 40 em outro, etc. Se fizermos um único estudo e este resulta em 40 melhoras, pode ser apenas uma coincidência, pegamos acidentalmente os 40 que iriam melhorar, em 200, e os agrupamos em nosso estudo. Um segundo estudo pode resultar em 0 melhoras, indicando que os 20 estão no outro grupo.

Isso é melhor entendido jogando moedas para cara e coroa. Devem sair metade cara e metade coroa. Em mil jogadas, 500 caras e 500 coroas. Em média. Mas se jogar 1000 vezes vai encontra várias sequencias de 5 ou 10 caras ou coroas seguidas. Se jogar apenas 10 vezes, também pode acontecer o mesmo, tirar 10 caras seguidas. Isso não o torna campeão de cara e coroa, nem especial, apenas sortudo.

Quanto mais estudos forem feitos sobre o efeito de um medicamento para A, tratando B, mais confiável será o resultado. Se tivermos um resultado com 50 curas, 10 com 20 curas em média, e um com 1 cura, saberemos que, na média, a droga não cura mais do que não tratar. Se tivermos mais resultados com 50 curas, um com 80 curas, e um com 20 curas, saberemos com mais confiança que há uma relação e eficácia.

Mas existe outra forma de lidar com essa percepção inicial de um médico com longa prática que pensa ver um efeito de um medicamento para A em uma condição B. Esta forma é espúria e não deveria ser adotada, especialmente se o médico prestou atenção as aulas sobre metodologia científica na faculdade e não apenas passou nas provas sem dar a atenção devida.

Essa forma é, creditar valor absoluto a sua prática e conhecimento, de determinar que, se funciona para ele no consultório (ou parece funcionar) funciona para todo mundo, é um tratamento real, válido, e deve ser receitado para todos, e todos devem aceitar, inclusive outros médicos e a ciência.

Replication crisis — Lateral Magazine
Replicar para confirmar

E isso é mais comum do que deveria, infelizmente.

No meio de uma pandemia (como leio nas redes, uma pandemia mundial) seria esperado que se vendessem óleo de cobra para curar algo que não tem cura ainda. O medo, o hábito de tomar “garrafadas”, usar simpatias, receitar bolinhas de açúcar sem efeito, mas que acalmam as pessoas, e a natural atração das pessoas por respostas simples garante isso. Mas como há uma certa compreensão da validade da ciência hoje em dia (calma, é uma compreensão um tanto distorcida) os vendedores de óleo de cobra precisam disfarçar seus produtos com um jargão pseudocientífico. Um cientista ou um leigo com mais informação pode perceber a diferença, mas a maioria não. A quantidade de “coisas quânticas” vendidas hoje em dia demonstra isso com perfeição.

Assim, um estudo sobre cloroquina, UM, que parece indicar algum efeito, leve, de melhora, é recorrentemente usado como “prova” que o medicamento funciona contra Covid-19. O fato de que dezenas de outros indicam que não, que não há efeito real, e que inclusive tem efeitos colaterais perigosos, é ignorado. Basta um aparentemente positivo. Aparentemente, porque seu autor acabou reconhecendo que este não suporta a conclusão que apresentou, tem falhas, e hoje é um cientista desacreditado por seus pares. E mesmo assim, a cada conversa sobre isso nas redes, alguém traz o estudo a baila.

Algo que vende bem a tanto tempo não pode estar errado.

O efeito de não compreender melhor a ciência e o rigor, e a falsa ideia de que ciência é algo que um cientista disse (ou um médico) é devastador. Um médico famoso, que nem deveria ser chamado de médico, defende o uso de cloro em enemas para curar crianças autistas. O cloro descama o intestino das crianças, provoca dor e sofrimento, engana pais desesperados, mas ele enfeita seu óleo de cobra com jargão pseudocientífico, indistinguível para o cidadão comum do real, da ciência real.

Outros receitam “kit Covid” pela módica quantia de 100 reais, um lucro brutal em relação ao custo do kit, alegando que “tratam de maneira personalizada” cada paciente. Efeito da aceitação da homeopatia pela sociedade médica, que parece não ver problema em “medicamentos” sem efeitos colaterais, mas também sem eficácia alguma.

No meio da crise temos que tentar explicar questões complexas para pessoas que não estão interessadas em respostas complexas, que querem um medicamento mágico, uma bala de prata, sem efeitos colaterais e ainda assim de cura imediata, e desesperadas em meio a centenas de milhares de mortos.

Não sei a solução. Acho que não há uma, pelo menos não rápida ou imediata. Talvez, apenas talvez, pensamento crítico, e a compreensão a longo prazo da forma como a ciência produz conhecimento, possam ajudar, em um futuro incerto. No momento, podemos apenas controlar os danos e falar com que quer ouvir, quer saber, quer entender e se dispõe a perder uma ou outra crença pessoal de estimação.

Homero

PS 1: Com certeza alguém vai ler e dizer “ah, é por isso que eu não confio nessas vacinas feitas as pressas, tudo demora e…”. Esse é um ceticismo cego comum. A questão não é o tempo, são os protocolos. Em geral demora porque, primeiro, novas drogas tem de fazer um caminho demorado mas vacinas, especialmente contra coronavírus, começam já de uma base conhecida, vacinas existentes, técnicas existentes, e segundo, em tempos normais é demorado esperar por estudos de replicação, mas a urgência da pandemia fez com que uma diversidade de laboratórios e pesquisadores replicassem os estudos de eficácia e segurança, a uma taxa nunca vista. E validaram a segurança e eficácia das vacinas dentro dos protocolos exigidos.

PS 2: Uma recomendação de leitura, o Mundo Assombrado Pelos Demônios: A Ciência Como Uma Vela na Escuridão, de Carl Sagan – link na Amazon na imagem abaixo.

O Mundo Assombrado Pelos Demonios - Saraiva

2 comentários sobre “Cloroquina, Ivermectina, Óleo de Cobra e o Covid -19

  1. Parabéns pelo belo texto como sempre. É isso, a pessoas buscam sempre a solução mais fácil, e mais rápida, mesmo que não funcione. A educação formal ajuda mas de forma alguma impede essas crendices. Médicos mais velhos tiveram pouco contato com a medicina baseada em evidencias e justifica parte desse comportamento.

    • Obrigado! E é isso, mais que a educação formal é o treino em pensamento crítico e ceticismo lógico que ajuda nossa mente a se defender de enganos, erros e ilusões cognitivas. Mas falta demais em todo processo educacional esse treino.
      Um abraço.

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