A Ciência e os Ovos

“Hoje ovo faz bem, semana passada ovo fazia mal, esses cientistas inventam as coisas, é tudo chute!”

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Essa afirmação, ou variações dela, são muito comuns. Especialmente em comentários de Internet, mas também em conversas com amigos e debates diversos. É divertida, uma piada engraçada, recorrente, e parece fazer sentido, quem nunca leu uma manchete sobre descoberta da ciência ou estudo que parecia desmentir ou contrariar outra lida algum tempo atrás?

Para mim é divertida por outros motivos. O principal é, essas alegações são feitas por pessoas usando um computador. Redes de comunicação global. Satélites. Pessoas cuja expectativa de vida é de mais de 70 anos. Que tem filhos em um período histórico único em que a mortalidade infantil não é de mais de 50% mas apenas 8 em mil em média. Gente que nunca viu de perto pessoas com doenças ou condições médicas como tifo, cólera, bócio (a maioria nem saberia o que é bócio), uma infinidade de dolorosas e mortais doenças que assombraram nossos antepassados.

E mesmo assim, não entendem que devem tudo isso a ciência, cientistas, conhecimento científico confiável e real. Não percebem que basicamente tudo a sua volta depende desse conhecimento, do rigor e confiabilidade desse conhecimento. O computador, mas também a lâmpada em sua sala, a tinta de seu mouse, o veículo que usa, o medicamento que toma, a água tratada contra parasitas diversos. Tudo a sua volta. Toda sua vida, todo conforto e segurança de sua longa vida, mais de 70 contra menos de 35 de seus antepassados, se apoia no conhecimento científico.

Mas o ovo?

O ovo vai bem obrigado. A divulgação, e especialmente a falta dos recursos necessários para ler e compreender estudos científicos, é que é o problema.

De uma forma simplificada:

Estudo 1 – Com um grupo controlado de pacientes, com esta e esta comorbidade, este e este comportamento, esta e esta condição física e idades próximas, mais de 50 anos, e com o consumo de 10 ovos por semana, dentro de um regime específico assim e assado, e mais estas, extensas e detalhadas condições, verificou-se que, com maior incidência que o desvio normal esperado, piora em determinadas situações de saúde, como aumento de risco cardíaco, entre outras variações metabólicas detalhadas no corpo deste estudo.

Estudo 2 – Com um grupo controlado de pacientes, com esta e esta comorbidade, este e este comportamento, esta e esta condição física e idades próximas, entre 20 e 40 anos, e com o consumo de 4 ovos por semana, dentro de um regime específico assim e assado, e mais estas, extensas e detalhadas condições, verificou-se que, com maior incidência que o desvio normal esperado, melhora em determinadas situações de saúde, como maior capacidade física e pulmonar, maior fortalecimento do músculo cardíaco, entre outras variações metabólicas detalhadas no corpo deste estudo.

Manchete Relacionada ao estudo 1 – OVO FAZ MAL, DIZEM CIENTISTAS!!!
No corpo da matéria, nenhuma menção as condições ou detalhamento do estudo.

Manchete Relacionada ao estudo 2 – OVO FAZ BEM AGORA, DIZEM CIENTISTAS!!!
No corpo da matéria, nenhuma menção as condições ou detalhamento do estudo.

Essa simplificação acima se repete o tempo todo, e quando mais complexa for a questão relacionada ao estudo, quanto mais complexo for, seu detalhamento e suas conclusões, mais simplistas, e incorretas, serão as manchetes e a “interpretação”, do repórter e dos leitores. E ovo faz bem E mal, dependendo de várias condições, circunstâncias e quantidade. Como tudo, na verdade.

Como corrigir isso?

Basicamente, entendendo melhor a ciência, seu método, e o que dá confiabilidade ao conhecimento científico. Como peer review, replicação independente, testes de confirmação, controle de dados e protocolos, e uma enorme comunidade disposta a verificar qualquer alegação, de amigo ou desafeto, para descobrir se é real ou tem falhas. Tudo, basicamente tudo, na ciência, em seus protocolos, se dedica a essa parte fundamental da produção científica, testar e testar qualquer alegação ou conclusão antes de dar a ela um grau de confiabilidade “científico”.

Ah, mas isso então quer dizer que a ciência é perfeita, nunca erra, e devemos acreditar nela cegamente?

Não, de forma alguma. Se fosse, inclusive, não haveria necessidade de todo esse rigor, todo esse esforço, todos os protocolos de segurança e confiabilidade dos estudos.

Desenvolvemos esse sistema rigoroso, que está sempre se aprimorando, detectando erros, fraudes, e mesmo corrupção e desonestidade, justamente por sabermos que seres humanos, e suas atividades, estão sujeitos a tudo isso. Para entender, vamos ver o que significam e para que servem esses pontos importantes do método, peer review e replicação.

Peer review, revisão por pares. O sentido é, se um físico apresenta um estudo e um conjunto de conclusões baseado nele, é preciso que outros físicos, especialistas na mesma área, ou mesmo outros especialistas, como matemáticos estatísticos, analisem o estudo a procura de falhas. Que falhas?

Primeiro, o viés pessoal. Mesmo um cientista pode “se apaixonar” por sua hipótese, sua ideia, e consciente ou inconscientemente direcionar os dados para reforçar a mesma. Pode “escolher” resultados, ignorar outros, e formar um conjunto coerente, mas incompleto, do estudo, de forma a validar o que ele inicialmente pretendia demonstrar. O peer review procura essas falhas, e as aponta, detalhando inclusive muitas vezes o que precisaria ser feito para corrigi-las.

Assim o cientista autor do estudo pode refazer o mesmo, dentro desses novos protocolos e parâmetros, para demonstrar que a) estava correto e mesmo com os ajustes seus resultados sustentam a conclusão ou b) com os novos protocolos os resultados não sustentam a conclusão.

Isso é feito não apenas uma vez, mas várias, tantas quanto forem necessárias. Quanto mais, mais confiável e seguras são as conclusões do estudo. Isso dá trabalho, leva tempo, e nem sempre resulta na confirmação do estudo inicial.

Replicação.

Por que replicar um estudo que deu certo, tem todos os protocolos aceitos, e parece sustentar as conclusões? Porque pode ser por acidente. Um resultado de sorte, estatisticamente improvável, mas possível.

Jogue uma moeda para cima. Anote se deu cara ou coroa. Faça isso 10 mil vezes. O resultado esperado é de mais ou menos 5 mil caras e 5 mil coroas. Todo mundo entende que se der 5600 caras e 4400 coroas, ainda estará correto, e dentro das regras da estatística e probabilidade.

Mas se procurar entre os 10 mil lançamentos, poderá encontrar algo como 20 caras ou 40 coroas seguidas. Se jogar 100 mil vezes, certamente encontrará. Isso significa que, momentaneamente, a lei da probabilidade foi “suspensa” e algo extraordinário ocorreu? Claro que não, entre eventos de números grandes isso é esperado. E isso se aplica a tudo, inclusive a estudos médicos e científicos.

Testar uma nova droga implica em tratar pacientes de modo que os que receberem a nova droga se curem a uma taxa maior que as que não tomam a nova droga, e que os que tomaram placebo pensando que era a nova droga. Mas, as vezes, isso pode ocorrer acidentalmente. Se uma doença tem taxa de regressão natural de 30%, então 30 em cada 100 vão se curar sem nenhum tratamento.

Se eu crio um estudo com 3 grupos de 30 pessoas, aplico a nova droga ao primeiro grupo, dou placebo ao segundo grupo, e não trato o terceiro grupo, e o grupo que toma a nova droga se cura totalmente, todos os 30, enquanto o segundo se cura apenas em 30%, e o sem tratamento idem, posso concluir que a nova droga é eficiente, correto?

Não. Pode concluir que é uma, forte, possibilidade, que merece continuar o estudo, mas não que tem certeza, ou próximo disso. Para isso precisa de um número maior de pacientes, ou de novos estudos idênticos. Embora improvável, seu grupo de teste que tomou a nova droga poderia ser formado apenas de pessoas que já iriam se curar naturalmente, os 30 de 100. Por isso estudos desse tipo precisam envolver milhares, ou dezenas de milhares de pacientes, para melhorar a confiabilidade. Ou ser seguido por vários estudos de replicação. Se em todos, quase cem por cento se curar (ou mais que o esperado nos outros grupos), então estamos no caminho certo. No caminho.

Muitas vezes estudos que estudam estudos, meta-analises, ajudam a evitar, ou detectar, o erro de tipo I e o viés de publicação. Uma meta-analise é feita sobre todos os estudos disponíveis (ou os mais relevantes) de forma a “ver” o real resultado dos mesmos. Esse é um dos motivos de porque a homeopatia não consegue ser aceita como algo real ou eficaz, todas as meta-analises feitas com seus melhores estudos resultam negativamente em termos de eficácia e confiabilidade.

Para que tanto esforço?

Parafraseando o grande político nacional Odorico Paraguaçu, pessoas são pessoas, nada mais que pessoas. É impossível ou muito difícil para a maioria das pessoas evitar o viés pessoal. Minto, é impossível ou muito difícil para TODAS as pessoas evitar o viés pessoal. Isso inclui, claro, cientistas. Todos eles.

Qualquer atividade humana deve considerar isso, se quer ser precisa ou confiável. Qualquer atividade humana. Se interroga alguém, uma testemunha, é melhor entender o viés que ela possa ter, ao narrar os fatos. Se investiga o desabamento de uma ponte, precisa entender o viés de quem relata a construção. Se quer saber sobre uma pessoa, precisa entender o viés de quem a descreve, se é um vizinho desafeto ou o irmão amoroso da mesma.

A ciência quer produzir conhecimento confiável então deve dar extrema atenção a isso.

Lemos um artigo que parece reforçar algo em que já acreditamos ou que gostamos, ou gostaríamos de alguma forma que seja real, ou ainda foi dito por alguém de quem gostamos, admiramos ou seguimos, ou uma autoridade pessoal. Nossa primeira tendência é abraça-lo, dar a ele o total de nossa confiança. Por outro lado ler algo que refute ou confronte nossa crença ou nosso desejo de que fosse diferente, nos faz desconfiar, procurar falhas, recusar mesmo inconscientemente as alegações que contém. Com o tempo teremos um conjunto de “coisas que confirmam” registradas, sustentando a crença ou desejo, e um grupo esquecido e ignorado de “coisas que refutam ou contrariam” isso.

Dado tempo suficiente ou pressão suficiente, e será quase impossível mudar isso.

Qual a solução para este viés?

Não há. Ou melhor, as que existem são difíceis, complexas, muitas vezes dolorosas, exigem tempo e informação e principalmente o desejo pessoal de mudar, de saber em vez de acreditar. Não há uma fórmula simples ou mágica (spoiler, nunca há, para problemas complexos). Por exemplo, quando um divulgador de ciência, um repórter científico, ou não, vai publicar algo sobre um estudo ou descoberta da ciência, poderia detalhar toda complexidade, citar as questões em aberto, demonstrar a especificidade de um estudo (ao que se aplica), e considerar o tipo de erro de compreensão mais comum para o assunto, e previamente se preparar para ele.

Quantas pessoas, leigas, leriam essa reportagem? Quantos parariam e se interessariam por uma manchete como “Cientistas tem novos dados sobre o consumo de ovo, que complementam o que sabemos sobre isso, em estudo específico para uma determinada faixa etária e condições de saúde”?

E no corpo do artigo os detalhes do estudo, os requisitos e protocolos adotados, os apêndices detalhados dos pacientes etc, etc, etc.

A maior parte das pessoas, que vive em um mundo dependente de ciência completamente (Carl Sagan), não sabe como a ciência é feita. Boa parte, a maioria, pensa que ciência é algo que um cientista disse. Assim, se um cientista, apenas um, diz que não há aquecimento global, e outro (não importa quantos) diz que existe, ficam elas por elas. Esses cientistas, nunca entram em acordo, hahahaha, querem apenas posar de espertos e me enganar.

Sem saber como a ciência é feita, não há como entender o que a ciência diz, o conhecimento científico e sua confiabilidade. Somando tudo a pouca noção sobre história, sobre a vida de nossos antepassados, sobre como viemos de lá para hoje, o ovo vai continuar a fazer mal semana sim semana não. Eletricidade, flúor e cloro tratando a água, vacinas, celulares e redes de comunicação por satélites, computadores, vão continuar um tipo de “mágica” que pouco tem a ver com “ciência e cientistas” para boa parte das pessoas.

Estes tempos estamos tendo o evento do século, a pandemia de Covid-19. A dificuldade em explicar conclusões científicas e consenso nunca foi tão profunda. Descuidos simples como a recente declaração da OMS sobre pacientes assintomáticos, sem considerar que a absoluta maioria, incluindo o atual ocupante do Palácio do Planalto, não conhece, nem entenderia, a diferença entre assintomático, pré-sintomático e sintomático, os riscos de cada situação, fez um estrago enorme no esforço de conter a pandemia por aqui, esforço que já era grande com a sabotagem diária do presidente.

A explicação é complexa demais, se você não sabe muito sobre produção de conhecimento científico, sobre estudos que podem ser excluídos até que mais dados surjam, sem que isso signifique que estão incorretos ou que a alegação contrária é verdadeira, e nem entende os riscos reais da doença.

O que se pode fazer?

Em termos de curto, curtíssimo prazo, acho que nada. Fora de minha bolha de pessoas que tem esse conhecimento, poucos entenderiam este texto. Nem preciso ir longe, no Facebook amigos antigos e novos repetem bobagens anti-ciência sem que eu possa explicar o erro, devido ao viés, político ou ideológico, fortíssimo. Se reforça o que penso, é verdade, se refuta, não é.

E o mais triste, amigos repetem erros tanto contra como a favor da ciência, sem compreender o problema.

Mas em termos de médio e longo prazo, crianças e jovens. Mais que ensinar ciência, o conhecimento científico pronto e estático, ensinar a ciência de forma dinâmica, não o que ela sabe, mas como ela sabe. Basicamente, seguir Carl Sagan, mostrar como se chega a uma conclusão científica, um conhecimento confiável, mostrar em uma folha de cartolina, um mapa e dois palitos de madeira, como se determinou que a Terra era redonda, e mais, qual sua circunferência, diâmetro e raio. Apenas com uma cartolina, um mapa e dois palitos.

Minha filha desde pequena adorava histórias e histórias sobre ciência, e uma das perguntas mais constantes era, mas como eles sabem disso? E nada era mais fascinante do que refazer os passos de cada descoberta, cada passo no conhecimento deste universo.

Homero

Carl Sagan demonstrando a curvatura da Terra. Com uma cartolina, um mapa e dois palitos de madeira.

2 comentários sobre “A Ciência e os Ovos

  1. Novamente, parabéns pelo excelente texto. Sou infectologista e esse período de COVID tem sido desgastante, muitos e muitos colegas sem noção de como o conhecimento é construido. Tentar mostrar que não provamos o não efeito de medicações é dificil, os vieses pessoais são fortes.

    • Olá Rafael, obrigado pelo elogio 🙂 Eu também fico aflito com isso, a incapacidade de entenderem como o conhecimento científico é produzido. Não que seja perfeito ou inerrante, mas apenas o mais próximo e mais confiável que temos.
      O viés pessoal realmente é forte demais e sem treinamento, quase impossível de ser vencido pela própria pessoa.
      Um abraço.

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