Nazismo, dog whistle e polícia do pensamento

Polícia Legislativa vai investigar gesto de assessor da Presidência em sessão no Senado

Enquanto o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, falava, Filipe Martins fez um gesto com a mão direita, e repetiu o sinal. Segundo o coordenador do curso de Relações Internacionais da USP, gesto passou a ser usado como forma de identificar quem defende a superioridade branca.

Dog whistler

Este é um assunto delicado e polêmico. Não, este é O assunto delicado e polêmico por definição, e é assim por envolver emoções em seu limite, o horror, o sofrimento em nível extremo, e a empatia humana de nossa espécie.

Isso significa que há boa chance de, depois de duas linhas, e antes mesmo de começar a ter elaborado qualquer argumento, quem lê o texto provavelmente terá feito seu julgamento, sua condenação, e não vai mais ser possível tentar um debate ou apresentação de ideias e evidências, ou mesmo uma conversa civilizada. Muito provavelmente este autor será classificado como um “nazista enrustido, passador de pano para monstros, que está tentando defender o indefensável”.

Eu quase desisti de escrever o que se segue por esse motivo, e apenas o fato de que uma ideia não pode ser mantida presa na cabeça por muito tempo (pelo menos na minha), e porque acho que se pelo menos uma pessoa chegar até o final do texto e, mesmo que ainda não concorde, entenda meu ponto e meus argumentos, terá valido a pena.

Mesmo assim, vou começar pelas bordas, por em experimento mental para testar a posição do leitor em relação a elementos importantes para minha argumentação.

Um nazista, de verdade, declarado, de ter piscina com suástica no fundo, cueca com suástica, textos sobre o assunto, elogiosos a Hitler, que passou a vida defendendo a superioridade de sua raça e mostrando desprezo por outras, negros, judeus, e por mulheres, é acusado de um crime que, ao que tudo indica, não cometeu.

Entre duas ações, qual considera justa ou legítima: que ele seja condenado, afinal é péssima pessoa e merece tudo de ruim que ocorrer com ele (note que não estou questionando se sentirá pena dele, eu não sentiria, mas se acha justo e legítimo), ou considera que, mesmo nesse caso é preciso que um condenado seja culpado pelo crime de que é acusado?

Se considera o primeiro caso como legítimo, justo, e não vê nenhuma chance de mudar de posição, este texto não é para você, e não vai ajuda-lo. Só causará desconforto e irritação e recomendo fortemente que não prossiga.

Se entretanto considera a primeira opção, mas gostaria de ouvir o outro lado, ou se considera a segunda, o acusado deve ser culpado para ser condenado, então podemos prosseguir e talvez ache interessante os argumentos e ideias apresentados.

O que é um nazista?

Um nazista de verdade

Boa parte das dificuldades de debater ou mesmo conversar sobre questões complexas, e polêmicas, é a imprecisão das definições de muitos termos usados. Como construtos humanos, termos podem ter, e quase sempre tem, uma diversidade de sentidos e alcances. Quanto mais complexo o assunto, maior a chance de duas pessoas passarem um bom tempo discutindo coisas distintas embora usem os mesmos termos para isso.

O nazismo é um termo desse tipo, assim como fascismo, socialismo etc. Um nome de um movimento específico, nacional socialismo, surgido na Alemanha pré segunda guerra, que se tornou um termo carregado de sentidos e de aspectos emocionais. E não a toa, ou sem motivo. Tirando neo-nazistas e negadores do holocausto, o que ocorreu como desdobramento deste movimento, todo o horror dos campos de concentração, racismo, violência, crueldade, e a morte em modelo industrial, sem remorso e sem empatia é uma unanimidade e um dos eventos mais terríveis da história humana.

Mas qual o alcance do termo hoje? Se é nazista alguém que pertence ao partido nacional-socialista, não há mais nazistas. Se é alguém que adota a ideologia nazista, sim, existem, infelizmente mais do que seria razoável. Mas quanto dela deve ser adotado para ser nazista? Basta considerar que judeus são raça inferior? Ou isso é “apenas” racismo?

Pessoalmente, como todos, tenho uma definição e alcance para o termo, que determina o uso do termo para mim. E é preciso um conjunto claro de comportamentos e expressões para isso, para que eu considere alguém nazista ou algo nazismo. Não é qualquer pessoa ruim (e existem as muito ruins) que é nazista, até porque isso dilui e tira força do termo (como em muitos casos, o uso frouxo de termos faz com que percam força e sentido).

Para efeitos de discussão e debate vou usar o termo nesse sentido pessoal, mas embasado nessa argumentação básica, pessoas ruins, pessoas que discordam de mim, mesmo veementemente, não são necessariamente e automaticamente nazistas. É preciso comportamentos, uma diversidade deles, expressões e ações ligadas a ideologia nazista. Ter uma piscina cujo fundo é uma suástica, fazer saudação nazista usando um bigodinho ridículo e pregar a extinção de judeus por serem raça inferior é um bom começo.

Símbolos, criados e adotados

Bichinhos supremacistas

Símbolos são bons indicadores, mas perigosos e passíveis de gerarem confusão. E por isso mesmo uma tática comum é a adoção de símbolos, originalmente inofensivos ou com sentidos diferentes, por correntes e movimentos com forte rejeição. Embora pareça recente, isso é algo que surge bem cedo em nossa história. Adotar um símbolo de opressão, por exemplo, e mudar seu sentido totalmente, como uma cruz, ou as cores do arco-íris para defender orgulho pela diferença.

Mas isso funciona para os dois lados, e tem surgido simbologia como “copo de leite” e “ok” que tentam distorcer o sentido. Um dos efeitos procurados é a confusão.

O copo de leite, por exemplo, parece mais ser uma forma de ironizar os adversários, e ridicularizar acusações de racismo, poder branco etc. E funciona. Como todo mundo em algum momento toma leite, como existem campanhas para que as pessoas tomem leite, a acusação se dilui, se torna risível, perde o peso e o efeito. Sim, supremacistas podem até usar, mas evidentemente não serve como “marca de identificação” se todo mundo, mesmo não supremacistas, o usam. E parece ser isso que o “adversário” dos supremacistas, sem humor e um tanto limitado em termos de lógica, não percebe.

Uma acusação de “fulano é supremacista e sinalizou a seus companheiros com o copo sobre a mesa na entrevista!” é desmontada, como piada, com fotos de gente como Obama com copo de leite sobre a mesa, tirada em outra situação etc.

Isso não significa que não existam supremacistas, que não usem símbolos e que não se identifiquem. Apenas que, se o símbolo é algo que se aplica a quase todo mundo, o efeito é contrário, apenas uma armadilha para gente sem compreensão da complexidade do problema.

Uma suástica identifica um supremacista. Embora em lugares como o Brasil e outros países cidadãos que seriam escorraçados de grupos supremacistas americanos as usem, por se acharem “brancos”. Mas de modo geral se um supremacista quisesse se identificar frente a outros usaria algo como um botão com o desenho do capuz da KKK por exemplo.

Ok, vamos continuar.

Google supremacista

O mais recente símbolo supremacista de gozação é a “tentativa de transformar o sinal de OK em símbolo de White Power”, como um dog whistle. Essa tentativa ganhou força e visibilidade graças ao trabalho forte, constante, sério e abrangente dos ADVERSÁRIOS dos supremacistas, que se esforçaram muito para divulgar a apontar em todo lugar o símbolo maligno.

Tiveram muito sucesso aparentemente, pois parece que essa coisa maligna estava escondida em todo lugar, e todo mundo parece que usa o sinal de Ok, algo muito assustados e perigoso e…

Sim, parece piada. E provavelmente é. Como um grupo secreto que deseja se identificar para companheiros escolheria um sinal que 99% da população faz, com outro sentido, várias vezes por dia. O criador dessa estratégia ou é maluco, ou está até agora dando risada da confusão que causou nos adversários, que têm a maior das boas intenções mas aparentemente nenhuma habilidade lógica ou um mínimo de malandragem para se defender.

O conceito de dog whistler são sinais “invisíveis” as outras pessoas fora do grupo. O sinal da cruz para antigos cristãos, o aperto de mão secreto dos iluminats, quer dizer, dos maçons etc. Um sinal secreto que todo mundo faz, que é exibido e declarado como sendo um sinal secreto para todos, e que pode ser confundido com um sinal que todo mundo usa para outra coisa é, basicamente, inútil. Quer dizer, inútil como sinal secreto, mas excelente para ganhar espaço e tornar ridículos os adversários no processo.

Polícia do pensamento

Ah, mas então aquele supremacista branco que fazia o sinal algemado no tribunal durante o julgamento não é um supremacista e estava apenas mandando um ok para a torcida? Hein, hein, hein?

Não, claro que não penso isso. Ele é um supremacista branco, e estava desafiando o tribunal com o único sinal que podia fazer, e é justamente por isso que símbolos são sequestrados. Permitem uso como desafio, misturado a uma utilização normal. E contam com os adversários para validar seu sentido, quando necessário, e o uso comum para se defender, quando for o caso.

E chegamos ao ponto que eu realmente queria tocar, que me incomoda mais que esse debate sobre símbolos e malucos nazistas: o controle do que se pensa. Não do que se diz ou das ações, eu sempre defendo que existem razões, formas e motivos para que exista autoridade necessária e responsabilização de atos e em casos bem específicos e restritos de manifestações (como gritar fogo em teatro lotado). Mas de pensamento.

O que você realmente pensa?

Podemos saber o que alguém pensa a ponto de ser seguro ou justo, legítimo, puni-lo, censura-lo ou controlar-lo de alguma forma? A notícia no alto deste texto, a investigação do sujeito que “coçou a lapela com sinal supremacista” é a motivação deste texto.

Para deixar claro, o sujeito, em minha opinião, da forma como vejo seus atos e suas manifestações, é um completo, bem, o termo que eu usaria daria margem a um processo então vou evitar. Mas acho um péssimo ser humano, e acho que as acusação sobre ser simpático a supremacistas e ao fascismo bem possíveis.

Mas isso basta? Sei que símbolos precisam de um contexto, mas o contexto basta? É possível afirmar, com dose razoável de certeza, que um gesto incorporado a toda população, que é usado inconscientemente por todos, sejam ou não supremacistas, foi usado com intenção? Sim, acho totalmente possível que, dentro da cabeça dele, tenha sido, mas estando dentro da cabeça dele, é legítimo, justo, legal, ou mininamente razoável punir alguém por algo que, supomos, ele pensou?

Será que toda vez quem um supremacista toma um copo de leite ele está mandando um sinal de supremacia branca? E se estiver, temos como determinar isso além da dúvida razoável e puni-lo? Punir alguém que é, claramente, uma má pessoa, alguém que fez várias coisas ruins, como o sujeito da notícia acima, por algo que não fez, ou que talvez tenha feito dentro da mente dele?

Um sujeito vestido de nazista, com suástica no braço, grita frases nazistas e em defesa de Hitler. É um nazista, claro. Mas é um ator em um filme, fazendo um papel. Nesse caso não é, claro. Mas é um ator que, em sua mente, adota a ideologia nazista e concorda com o que diz atuando, então é um nazista que acidentalmente faz um papel de nazista.

Eu acho que este é o passo limite, que nenhuma sociedade deve dar, o estabelecimento de uma polícia do pensamento. Não da expressão, repito, se diz algo que causa prejuízo, dano ou sofrimento real (não imaginário, como ofenderam meu unicórnio, ou ou sem sentido como um copo de leite sobre a mesa) deve se responsabilizar por isso, e é parte do dever do Estado regrar essa responsabilidade. Mas o pensamento, a intenção não declarada, não. Já é muito difícil definir as leis penais que punem crimes de tentativa, e mesmo estes dependem da análise de atos, não de pensamento.

Mecanismos de “cancelamento” baseados em Minority Report não me parecem justos ou razoáveis. Tendem a causar mais injustiças que ajudar sociedades a serem mais justas e equilibradas, e como costuma acontecer com cancelamentos, é mais uma satisfação a sanha vingativa das pessoas que uma aplicação de justiça real.

E o sujeito que arruma a lapela, ele fez ou não um sinal em desafio a câmara?

Máquina de ler pensamento (isso não existe)

Não sei. Pelo que leio sobre ele, é perfeitamente possível que sim. Mas isso é irrelevante, ser possível. Tudo é. Um aparente democrata, que jamais faria isso, e manda um ok para um amigo combinando um churrasco pode, em sua mente, estar rindo e tendo a intenção de que seja um sinal supremacista, e ter uma roupa de KKK escondida no armário de casa. Poder, pode. Não há como provar, e não deveria ser algo que a sociedade deva punir, o pensamento ruim, não autorizado, daninho. O ato e a manifestação em alguns casos, mas não o pensamento.

Investigar se ele quis ou não fazer um gesto de supremacia é uma armadilha que não devemos cair. É ineficaz, trás mais visibilidade para o que não se deseja, não resulta em nada real, e é em última medida injusto, ilegal, incorreto.

Tempos atrás, pré pandemia, o presidente Bolsonaro tomou café na frente das câmaras e na mesa tinha um copo de leite. Uma onde de indignação se iniciou, com adversários bem intencionados apontando que era um “símbolo supremacista” e que ele tinha feito de propósito. Não os apoiadores, mas os adversários deram espaço, visibilidade, e peso ao símbolo. Do qual eu NUNCA tinha ouvido falar antes. E agora todo mundo viu, comentou, falou, ficou sabendo, não sobre o símbolo, mas sobre o movimento supremacista.

Que rapidamente postou fotos de um monte de gente tomando leite, Lula inclusive, FHC etc, e rindo da confusão causada. Ah, mas pelo que o Lula fez não era, era só um copo de leite, mas sabendo como o presidente pensa, ele estava sendo supremacista e…

Polícia de pensamento. Isso é perigoso e absurdo. E ridículo. E ineficaz. E Barbra Streisand.

Referencias e links

Streisand Effect

Streisand effect – Wikipedia

Minority Report

Minority Report (film) – Wikipedia

Dog whistler

Dog whistle (politics) – Wikipedia

Homem faz sinal de OK e é cancelado por ser racista

Cultura do cancelamento: Homem que fez ‘sinal de OK’ retratado como racista sem saber foi cancelado e perdeu o emprego (uol.com.br)

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