Ditaduras, como reconhecer uma e porque são ruins

Como quem nunca viu uma vítima de pólio pode acabar acreditando que vacina é frescura, quem só tem a experiência da liberdade pode acabar achando que esse negócio é supervalorizado. Não é. “Melhor ter pão que liberdade”. E sem liberdade, como você vai saber se o seu vizinho tem mesmo pão? Quem o seu vizinho vai avisar quando o pão dele acabar? Quem você vai avisar?

Carlos Orsi

O trecho acima é de um artigo excelente do excelente Carlos Orsi e apresenta um efeito comum a nossa espécie, dar pouco valor ao que se alcançou por não entender aspectos de como era antes. Sofrer consequências do próprio sucesso, seja a ciência, seja a política e direitos fundamentais.

Eu nasci em 1960. Tinha 4 anos quando “a redentora” aconteceu e um golpe de estado instaurou uma ditadura. 8 quando o AI5 removeu qualquer vestígio de democracia e implementou um governo totalmente militar e autoritário.

Passei a infância e adolescência dentro do período mais “duro”, e vi a abertura, as tentativas de fechamento (como o atentado do Rio/Centro), mas não prestei muita atenção no começo.

Meu pai não foi preso, minha mãe também não, não tive parentes desaparecidos, e nem pessoas próximas. Não lia jornais e de toda forma nada muito grave aparecia nos jornais. Poderia dizer que, fora alguns contratempos, a ditadura não foi ruim para mim. E estaria mentindo ou simplificando muito a questão.

Uma ditadura, embora tenha seus aspectos mais medonhos na tortura, morte, violência, terror e medo, não é pautada ou definida por isso. Esses são efeitos colaterais, recursos, não o cerne de uma ditadura. O que define uma ditadura é a retirada de direitos e garantias individuais, o controle social e o poder concentrados, e a suspensão das regras democráticas.

Para isso é necessário que o medo seja uma constante e que vozes e ações discordantes sejam eliminadas. Efeitos colaterais, ferramentas, não o núcleo de uma ditadura.

Primeiro, ditaduras não matam, perseguem, torturam todas as pessoas sob seu poder. Nem a maioria. Nem mesmo muita gente. Bem, nem sempre, o Chile matou muita gente e torturou muita gente, Stálin e Mao também. Mas considerando a quantidade de pessoas no Brasil no período da ditadura, os mortos e torturados são relativamente poucos. Irrelevante, claro, para quem foi torturado ou teve parentes desaparecidos. A dor e o sofrimento são medonhos, insuportáveis, inimagináveis. Ter um filho ou filha desaparecido deve ser a maior dor que um ser humano pode experimentar, maior mesmo que a morte de um filho ou filha.

Mas realmente foi um número pequeno relativamente falando. Não importa, uma ditadura não é avaliada pela quantidade de pessoas, cidadãos, que mata ou tortura, mas pelo que causa a todos os outros, nesse caso a maioria.

Muitos não se lembram bem do período, acham que foi “tranquilo”, ou ouvem pais e avós dizer que “nada disso, para mim foi tudo normal” e que “só bandidos morreram”.

Não foi tudo normal, e nem só bandidos ou guerrilheiros morreram, gente absolutamente inocente morreu ou foi torturada. Apenas não em número que seja capaz de fazer com que todo mundo conhecesse alguém que morreu ou foi torturada.

O que ditaduras fazem, ao suspender regras e garantias legais, é instaurar o medo. O medo constante, que permeia tudo, que fica subentendido a maior parte do tempo. As, poucas, vozes a apontar isso, a criticar, são caladas, de forma a gerar mais medo. Não são presas e processadas, apenas desaparecem. O medo é a ferramenta que substitui ferramentas democráticas. O autoritarismo não tem como controlar a sociedade sem ele.

Não há mais para quem reclamar. Não tem a quem denunciar. Se desapareceu, esqueça. E o que fica claro, o mais importante, é que todo mundo pode desaparecer. Poucos desaparecem, certo, mas todo mundo pode. É essa espada de Damoclês que serve de controle social. Todo mundo pode.

Você tem um vizinho? Ele parece ser ligada a ditadura de alguma forma? Não pode brigar com ele, não importa o que ele faça. Todo mundo pode desaparecer e ninguém vai procurar.

Eu era bastante desligado, infantil mesmo, alienado no termo da época (que só vim a saber o sentido muito depois) e não lia nada sobre isso. Não que houvesse como ler algo, os jornais eram censurados e publicavam receitas de comida e poemas de Camões nas páginas de política ou policiais.

Delegados podiam tudo, policiais podiam tudo, parentes de políticos aprovados, podiam tudo.

Eu estava no colegial no Objetivo da Paulista e um amigo, conhecido, que sabia que eu lia o Pasquim me deu “uns textos para você dar uma lida”. Em um envelope marrom.

Voltei da escola com o pacote. Cheguei em casa e não sabia o que fazer. O medo, mesmo em alguém que nem sabia muito o que acontecia, ditadura, política, 15 anos, totalmente sem noção, era que “alguém visse”. O que eram os textos, eu não fazia ideia, e nunca abri o envelope, que provavelmente tinha textos ruins “contra isso tudo que está aí” sem a menor relevância. Foi a mais assustadora viagem de ônibus que já fiz na vida, uns poucos quilômetros entre a Paulista e a Pompéia. E eu já quase cai de asa delta e fiz viagens insanas de moto.

Mas acabei jogando fora não lembro como (jogar fora já era um problema, fiquei com aquilo muito tempo pensando o que fazer). Esse é o clima em uma ditadura, o medo. E esse é o problema de viver em uma democracia, acabamos esquecendo como é não viver assim. Como no caso das vacinas, que nos protegem e fazem alguns pensar que não precisamos delas. Pouca gente consegue pensar, e sentir, o que é ter um texto, um livro qualquer, nas mãos e isso ser “perigoso”, dar medo. É impensável, distante, uma história exagerada de um passado que não é de verdade. Mas é. É assim que funciona uma ditadura. É assim que ela se mantém. E é assim que ela acaba quando ninguém mais aguenta o medo.

Uma briga de rua podia fazer você desaparecer. Uma discussão na escola. Um protesto por qualquer coisa, qualquer motivo. Uma aula dada que incomodou o pai de um aluno que por acaso trabalha no órgão de repressão. Não importa que eram poucos, todo mundo podia desaparecer.

Um jornalista é chamado para depor, desaparece, e aparece suicidado em sua cela. O marido da professora, que era de um sindicato, desapareceu e ela só chora quieta. Mais poemas de Camões no jornal.

Herzog, suicidado.

Não é preciso ficar discutindo se foi ou não uma ditadura. Os que deram o golpe, os participantes, reconhecem isso com todas as letras, em discursos da época e posteriores. Mandaram as favas as objeções de consciência, acreditando, ou alegando acreditar, que,sim, é uma ditadura, mas é uma “boa”, com objetivos “bons”. Nunca é.

Ao suspender garantias ditaduras também estabelecem o direito da força. Uma imensidão de corruptos surge simplesmente por estarem ligados as forças da ditadura e não poderem ser acusados ou investigados. Desde a pequena “otoridade” de bairro, até gente graúda, todo mundo passa a viver em um sistema que simplesmente não oferece risco para o comportamento criminoso, se você está “do lado certo”, se tem amigos importantes. Durante o milagre econômico os empréstimos para “obras faraônicas” foram crescendo, endividando o pais de uma forma sem controle. Nenhum jornal podia publicar qualquer denúncia, nenhuma informação era pública, nenhuma transparência.

Existem registros, milhares deles, de desvios, de pessoas ligadas ao DOI/Codi, de todo tipo de irregularidade e falcatruas. No Espírito Santo reservas ecológicas de proteção foram griladas por gente “de dentro”, militares, agentes, etc. Sul, norte, nordeste, sudeste, nada escapou.

Existem, claro, ditaduras mais ou menos sanguinárias. No Chile, pessoas torturadas em estádios, na frente de seus familiares, filhos, esposas, maridos, que assistiam nas arquibancadas. Na Argentina centenas de crianças toradas de suas famílias, desaparecidos que tinham suas casas saqueadas durante a noite pelos que os denunciaram, enquanto eram torturadas pela polícia. Casas de desaparecidos eram “vendidas” com documentos falsos, e denunciantes ganhavam comissão.

Mas toda ditadura é ruim, é violenta, porque precisa ser, precisa que todos acreditem que, qualquer um pode ser um desaparecido.

Se com jornais publicando escândalos todos os dias atualmente essa gente ainda se sente capaz de escapar de punição, imagine quando qualquer crítica ou investigação era proibida e contida?

Mais que o número de pessoas que foi torturada e morta ou desapareceu durante a ditadura importa que ela colocou todos, todas as pessoas, como passíveis de serem mortas e torturadas. Esse medo, esse terror, é que acabou derrubando a ditadura, a percepção, mesmo não falada, da maioria das pessoas que assim é impossível viver. Que sem as garantias básicas, sem direitos e restrições legais, todo mundo está em risco, todo mundo pode desaparecer.

E não há nada a fazer.

Atendado ao Rio-Centro

Existem livros, documentos, jornais de época e um monte de informação sobre a ditadura. Mesmo que se acredite que “esquerdistas inventam essa coisa de ditadura”, sempre é bom se informar, ler os dois lados de uma questão, na verdade, dezenas de lados, como toda questão complexa. Livros sérios, como Brasil Nunca Mais, e livros divertidos, como FEBEAPA, o Festival de Besteiras que Assola o Pais, de Stanislaw Ponte Preta.

Existem vídeos, documentos, discursos dos principais participantes do golpe, em que eles dizem claramente o que é e como funciona a restrição de direitos. E que, sim, é uma ditadura. Não é nada inventado, são fatos e dados concretos, relatados pelos participantes do movimento, não por seus adversários.

Então, se podemos entender a importância da liberdade e das proteções e salvaguardas legais em uma sociedade democrática, devemos poder entender o quanto é perigosa, daninha e preocupante uma ditadura. Mesmo uma ditadura “branda” que “nem matou tanta gente assim”.

Homero

Atentado no RioCentro
https://pt.wikipedia.org/wiki/Atentado_do_Riocentro

FEBEAPA
https://www.amazon.com.br/Febeap%C3%A1-Festival-Besteira-Assola-Pa%C3%ADs-ebook/dp/B012HIADUY?tag=goog0ef-20&smid=A18CNA8NWQSYHH&ascsubtag=go_1686871380_65779544836_327582895583_aud-594374058437:pla-582807809423_c_

Brasil Nunca Mais
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Discursos dos participantes do golpe sobre ditadura
https://twitter.com/tesoureirosdoJB/status/1093305238323376129

Carlos Orsi – O Que Aprendi Sobre a Ditadura

O que aprendi sobre a ditadura (carlosorsi.blogspot.com)

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