Sagan estava coberto de razão. Infelizmente.

We live in a society exquisitely dependent on science and technology, in which hardly anyone knows anything about science and technology. Carl Sagan

Todo dia me espanto mais com a precisão da visão de Carl Sagan. Tanto em termos puramente científicos, quanto com sua percepção da sociedade, das pessoas e dos efeitos da desinformação e falhas educacionais. Cada vez mais o cidadão médio parece se afastar da ciência, da compreensão do que significa ciência, conhecimento científico, para sua vida, seu conforto, sua expectativa de vida, para a mortalidade infantil e para tudo mais a sua volta.

Pode ser uma percepção equivocada, afinal no passado a informação que a média de nossos antepassados tinham era mínima, concentrada em muito menos pessoas do que atualmente. E o efeito “old times, good times” é forte em nossa mente, mesmo na minha que sei com clareza que não é assim e o passado é sempre pior que os dias atuais.

Mas talvez estejamos em um dos ciclos de recuo de nossa espécie. Nossa história mostra que, ainda que avancemos sempre, ou não teríamos saído da idade do bronze para os dias de hoje (ou sobrevivido a Idade Média), esse avanço não é linear mas cíclico. Avançamos um pouco, recuamos um pouco, sempre avançando um pouco mais que recuamos.

Mas parece que atualmente, por motivos complexos e difíceis de detalhar quando se está dentro do período (talvez no futuro possamos entender melhor o que houve), houve um recuo realmente forte, e as pessoas realmente parecem ter se afastado de processos que pareciam estar bem estabelecidos, a compreensão da importância da ciência, da medicina, do conhecimento baseado em evidências, e também das democracias como forma, se não ideal, ainda a melhor que temos em relação as alternativas.

É o efeito do próprio sucesso, e se parece com o famoso “tempos difíceis produzem homens e mulheres fortes, homens e mulheres fortes produzem tempos fáceis, tempos fáceis produzem homens e mulheres fracas.

Vacinas, por exemplo, e coisas como Iodo no sal, Cloro e Flúor na água etc. A proteção sempre crescente que vacinas e tudo mais tem dado a nossa espécie fez com que boa parte das doenças que assolaram nossos antepassados, que os assombraram, que causavam taxa de mortalidade infantil de 50% e expectativa de vida de 30, 35 anos, foram eliminadas ou controladas. O cidadão médio passa a vida sem nunca ver alguém com Bócio, gente morrer de Tétano ou Raiva, crianças morrendo ou com sequelas de Sarampo etc.

Isso faz parecer para muitos que vacinas são desnecessárias, que é o “organismos dele” que o cura ou protege, que “tomar Sol e vitamina D” mata vírus etc.

Isso provocou um surto de doenças antes controladas, como o Sarampo, em países como o Brasil mas também nos USA. E será preciso mortes para, talvez, as pessoas voltarem a temer as doenças e pedirem pelas vacinas.

O Sarampo tem índice de mortalidade baixo, mas as sequelas não. Que incluem cegueira ou dano cerebral. E se uma doença volta, como Sarampo, provavelmente voltem muitas outras, e as crianças vão pegar várias, aumentando bastante a probabilidade de danos ou mortes com isso

Compreender a ciência

A solução, melhor que uma velha e boa peste negra, seria melhorar a compreensão da ciência pela população. Não o que a ciência diz, mas como o conhecimento que ela oferece é produzido e como isso garante mais confiabilidade a ele. Não 100%, nada é 100%, mas entender a diferença de , 5% de sobreviventes em média em casos de câncer sem tratamento, e 80 a 90% de sobrevivência em casos de detecção precoce de câncer com tratamentos baseados em evidência é importante.

Para isso seria preciso informação, um tipo mais específico de informação. Não o QUE a ciência sabe, mas COMO ela sabe. Saber sobre os protocolos de rigor em experimentos e para que servem. Entender porque mesmo visando lucro, fabricantes ainda tem de passar seus tratamentos e medicamentos pelo rigor de órgãos de controle, os mais rígidos que temos em toda atividade humana. E principalmente compreender que uma Grande Conspiração Mundial Para Me Enganar é algo totalmente sem sentido e até bastante ridículo.

Toda vez que leio um “argumento” antivax, ou anti-ciência, posso ver onde a informação do autor falha. Onde ele foi engando por pessoas com agenda própria, e pela forma como nossa mente funciona. E sempre percebo o quão difícil seria explicar o erro ou pelo menos a versão da ciência sobre a questão, porque falta o necessário para compreender a explicação ou essa visão do Universo. O último argumento que li incluía a “modificação genética de tudo, até da água”.

Claro que nem sempre é isso, há má fé, desonestidade, interesses pessoais, orgulho e tudo que nossa espécie apresenta as vezes. Mas a maioria está honestamente equivocada.

Um dos pontos que surgem sempre é o que é ciência. Em boa parte das alegações fica claro que a pessoa pensa que “ciência é algo que um cientista disse”. Esses cientistas, sempre querendo nos enganar. Este outro “cientista” disse o contrário, ah ha.

Ciência não é algo que um cientista diz. É algo, um conjunto de conhecimento, conclusões e teorias científicas (teoria no sentido estrito do termo, não uso comum, como palpite), que se sustentam sem precisar de uma autoridade. Que podem ser repetidas e testadas, de forma a chegar nas mesmas conclusões. Que se tornou confiável, não porque foi dita por um cientista, mas por ter passado por esse rigoroso sistema de validação. Que está sempre se aperfeiçoando e se tornando mais rigoroso e mais confiável. Que se tornou um “corpo de evidências”, como vemos em seriados e filmes de detetives, um conjunto probatório sólido.

Nesse conjunto é possível inclusive um elemento discordante, um perito que acha algo diferente. Mas se há centenas de estudos, experimentos, pesquisas, que apresentam um resultado A, e dois ou três um resultado B, é mais seguro manter a confiabilidade nos primeiros. A chance de todos estarem errado, e o estudo solitário certo, é menor que o contrário.

Confiamos em médicos e engenheiros, não por terem um diploma de médico e engenheiro, mas por terem estudado, 6 a 10 anos, o conhecimento que foi produzido pela ciência, por cientistas, em estudos, pesquisas, replicação independente, peer review etc, em suas áreas. Por isso confiamos em um médico quando ele nos examina e receita um tratamento, ou quando o engenheiro apresenta o projeto de nosso novo prédio de 10 andares. Eles estão, devem estar, usando conhecimento confiável apresentado a eles durante seus estudos.

Quando um médico passa a aplicar tratamentos “por fora”, sem validação científica, ele coloca em risco o paciente, e mais, deixa de ser “médico”, deixa de ter a segurança do todo sistema de validação desse conhecimento médico.

Claro que ele pode usar o que aprende, a experiência de consultório ou de trabalho no hospital, confiamos mais em pessoas mais experientes. Mas sempre dentro do conhecimento que ele adquiriu, e continua a adquirir se for um bom médico, validado por método de rigor. Muitos novos tratamentos surgem dessa percepção médica mas passam por estudos e pesquisas antes de se tornarem válidos. E muitos não passam dessa fase, por ineficácia ou risco não percebido pelo médico.

Talvez na medicina seja mais difícil para o leigo perceber que o médico está extrapolando sua capacidade ou conhecimento e aplicando algo sem sentido ou perigoso. Mas um engenheiro que trabalhe fora das linhas de segurança definidas pela ciência (sim, as matérias de engenharia são baseadas em ciência, física, química, matemática etc) pode ser detectado até pelo cidadão comum.

Um engenheiro é contratado para projetar um prédio 10 andares. Ao apresentar o projeto ele diz que “não vou usar o conhecimento tradicional, que aprendi na faculdade, acho ultrapassado, tenho um novo modelo, em vez de calcular as estruturas, alicerce, posição, ventos, geologia do local, tudo muito positivista, farei cálculos baseado no profundo e ancestral Feng-Shui. Nunca nenhum prédio de 10 andares caiu na China antiga quando era usado. E nenhuma das casas de 1 andar que fiz caiu também, estou seguro que será mais barato e mais eficiente”.

Sim, estou exagerando. Ninguém aceitaria isso (não sei, hoje em dia quem sabe). Mas este “reductio ad absurdum” serve para mostrar como alegações que afetam os outros precisam ser validadas com rigor.

Um médico que prescreve “ozônio retal” não está longe do engenheiro desse exemplo. Não há estudos que demonstrem nem a segurança, nem a eficácia, nem a quantificação, nem o método de aplicação, nem nada. É um Feng-Shui da medicina alternativa. Assim como a Homeopatia, a “air guitar” da medicina.

E um médico que venda tratamentos de “detox de vacina” é um charlatão criminoso e deveria ser processado.

Com a palavra, Asimov

Minha ignorância vale tanto quando seu conhecimento. Essa frase de Isaac Asimov demonstra um efeito dessa desinformação, da falta de compreensão sobre ciência, conhecimento científico e rigor do método. Ninguém afirma que a ciência sabe tudo ou acerta sempre, isso é um espantalho, e também uma percepção equivocada no cidadão médio.

Isso pode ser porque a quantidade de coisas que o cidadão médio não sabe, que parecem a ele “mistérios”, é bem maior que a da ciência. Assim quando ele faz “perguntas desafio” a ciência (cientistas ou divulgadores) em geral é algo que eles podem responder. E mostrar como sabem disso.

Depois de algum tempo de perguntas desafio vem a cobrança: mas então a ciência sabe tudo? Não, tem muita coisa que não sabemos, que a ciência não sabe, mas o que ela sabe, é muito confiável. E ela acerta mais que erra. Entre algo que é alegado pela ciência (ou seja, passou por estudos e todo rigor) e algo que é alegado mas não passou, eu apostaria sempre na primeira. Posso me enganar? Claro, mas será menos vezes do que se eu apostar no contrário.

Este “recuo” das sociedades atuais tem feito muitos tomarem como iguais afirmações científicas versus não científicas. Como tendo o mesmo valor ou mesma segurança em termos de conclusão ou realidade. Pessoas sem nenhum preparo ou conhecimento desandam a fazer alegações e a “refutar esta teoria científica” com total non sense. Mas do tipo que não é percebido pelo cidadão médio, que não tem como entender a diferença.

Basicamente, a minha ignorância vale o mesmo que um conhecimento produzido a duras penas, enorme esforço, rigor extremo de validação, replicação, análises e tudo mais que é parte do método científico.

Programas de entrevista dão mais espaço ao que dá audiência, ainda que seja absurdo, que a um cientista chato falando sobre metodologia de seu estudo (saudades de Carl Sagan). Anúncios de suplementos alimentares que curam de tudo, de unha encravada a catarata, médiuns usando leitura fria e engodos para “falar como mortos” ficando bilionários, tudo usando essa incapacidade de diferenciar uma alegação de um conhecimento real.

E ao mesmo tempo sabemos que o cidadão consegue entender quando se trata de algo mais familiar. O que demonstra que seria possível, durante o processo de educação, ensinar também isso, o pensamento racional o ceticismo, a validação da ciência, para tudo mais.

Um comprador de carro usado vai preferir que este seja avaliado por um mecânico de confiança do que pelo vendedor do carro. Ou pelo mecânico de confiança do que pelo amigo que dá palpite em tudo mas não sabe nada do assunto. E entende que se puder ter a avalição de 3 mecânicos será mais confiável que de um ou nenhum. Ceticismo aplicado a vida comum.

Existem uma variedade de experimentos que podem ser feitos nas escolas, com ou sem laboratórios, que ensinam a pensar com rigor, a duvidar, e a produzir evidências. Ilusões de ótica são excelentes para perceber as falhas do “é verdade, eu vi”, truques com cartas, alegações do senso comum que não se mostram reais, e muito conhecimento “científico” que pode ser demonstrado de forma a se entender o que sustenta a conclusão.

Eu adoraria repetir o experimento de Sir Willian Herschel ao descobrir o infra-vermelho. E adoraria fazer isso em resposta a uma pergunta de algum aluno “mas como sabemos que existe uma cor depois do vermelho?”.

Alternativas?

Não há. Não vejo alternativa a não ser começar novamente o passo a passo de ensinar novas gerações. Ensinar o que é ciência, não ensinar mais e mais dados prontos e alegações apenas.

Temos feito isso por gerações, dezenas de milhares de anos, cada geração acumulando o conhecimento da anterior. Primeiro lentamente, oralmente. Depois mais rápido, pela escrita. Por milhares de anos algo restrito aos poucos educados, e então, a prensa móvel e os livros em larga escala. E educação universal, o reconhecimento de ser um dos direitos humanos básicos.

Sala de aula na Roma antiga

Isso fez florescer um novo tipo de sociedade, inédito, não mais regrado por lendas e mitos, um iluminismo racional, um humanismo secular, que resultou na separação igreja/estado (provavelmente o mais benéfico dos procedimentos de nossas sociedades) e o que parecia ser um novo caminho sem volta.

Ou recuos. Mas parece que não. Algo se perdeu, em algum momento o processo de informar se deteriorou, e em vez de ensinar a pensar, a educação se tornou decorar dados. E dados diferem bastante de informação ou de pensar de forma lógico racional.

Eu espero que o ciclo termine e um novo, de avanço, se inicie. Se sobrevivermos pode ser que além de recuperar o espaço perdido, a gente consiga avançar um pouco mais. E crianças parem de morrer de doenças preveníveis, que idosos não sejam enganados por suplemento alimentar que cura catarata, e que pilantras se elejam contando mentiras óbvias mas que é preciso um tipo de pensamento lógico para ser capaz de perceber.

Sou um otimista irredutível.

Deixo aqui o vídeo mais absurdo, triste, desesperador, que já vi sobre a atual situação do obscurantismo orgulhoso e sem noção que nos aflige. Assistam por sua conta e risco:

Links extras

A Ciência Pensa que Sabe Tudo?
https://homeroottoni.wordpress.com/2021/04/22/a-ciencia-sabe-pensa-que-sabe-tudo/

Willian Herschel e o Infravermelhor
https://en.wikipedia.org/wiki/William_Herschel

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