Espécies não existem! Como assim?!?!?

Nós, seres humanos, somos catalogadores compulsivos. É nossa natureza dar nomes às coisas (obrigado, Genesis..:-), e estabelecer parâmetros de definição, isso é isso e aquilo é aquilo. O mundo a nossa volta colabora, muitas vezes, com essa obsessão, apresentando coisas que são, claramente, distintas, e nomear coisas, entender suas diferenças, ajudou muito nossa sobrevivência como espécie. Vemos algo e tentamos classificar.

Carl Nilsson Linnæus, em português Carlos Lineu

Seres vivos, por exemplo. Embora desde a antiguidade tenhamos percebido semelhanças entre alguns tipos de seres, parecia claro que havia classes distintas, que chamamos hoje de espécies. Carlos Lineu (foto ao lado) catalogou de forma bem precisa, apenas com base em dados aparentes, os milhares de espécies conhecidas.

Dessa forma em nossa mente, um cavalo é um cavalo, um porco é um porco, uma mosca é uma mosca, e assim por diante. São espécies, grupos de indivíduos idênticos e pertencentes a uma única classificação, separados dos outros tipos.

Isso funcionou bem até a chegada de Darwin e a Teoria da Evolução. Com esse novo conhecimento entendemos, finalmente, que cada indivíduo, cada espécie, está ligado por uma sequência contínua a todas as outras, em diversas e múltiplas linhagens pelo tempo.

Uma imagem que ajuda a entender essa questão é apresentada por Dawkins, e vem bem a calhar para ilustrar essa ligação. Eu usei o exemplo no post “Se a evolução é real, por que nenhum chimpanzé evoluiu até ser como nós?” e reproduzo aqui (o texto a seguir é meu, baseado na idéia de Dawkins):

“Vou usar uma imagem que acho muito interessante, criada por Dawkins: Imagine uma menina segurando a mão de sua mãe, em uma praia africana, na Somália (o “chifre” da África). Sua mãe por sua vez segura na outra mão sua própria mãe, avó da menina (são sempre mulheres, pois é mais fácil seguir o DNA mitocondrial pelos milênios).

Cada mulher segura em uma mão a filha, e em outra sua mãe, sempre se afastando da praia. A cada passo, uma nova geração de antepassados

Percorrendo as planícies africanas, montanhas, florestas, desertos, sempre seguindo mãe e filha, passamos por mínimas mudanças, pequenas modificações, mas sempre cada ser pertencendo tanto à espécie de sua mãe quanto de sua filha. Mas ligeiramente diferentes.

Passamos pelos Homo Erectus, pelos Habilis, pelos australopitecos, e continuamos, sempre pequenas e mínimas mudanças.

Na costa ocidental, Oceano Atlântico, em uma praia de um país chamado Mauritânia, encontramos nosso mais longínquo antepassado, um mais recente ancestral em comum com os chimpanzés. Este segura em sua mão direita a filha, e segue sua linhagem até a menina na costa oriental, Oceano Índico.

Mas em sua mãe esquerda, ela segura sua outra filha, que segura sua própria filha, e assim por diante, até encontrar, também na outra costa, ao lado da menina do começo da história, uma pequena chimpanzé fêmea, que segura a mão de sua mãe.

Um laço, gigantesco em termos humanos, mas pequeno em termos geológicos, ligando a menina humana e a menina chimpanzé, pela vastidão dos tempos e da África.”

Dawkins escolheu seres humanos e chimpanzés, para demonstrar o parentesco, mas poderia ter escolhido qualquer outra dupla de espécies, do lobo ao coelho, do levedo ao elefante, da mosca a aranha. Todos têm uma linha desse tipo, de mãe para filha, até o ancestral em comum, e de volta à outra espécie.

Eu, particularmente, acho essa imagem esplêndida e muito útil para a compreensão do problema da evolução. Uma linha ininterrupta de seres vivos, indivíduos, ligadas por um aperto de mão, entre todos os seres vivos.

Mas embora seja uma imagem impactante e relevante, nossa mente “catalogadora” às vezes estranha o conceito e as implicações. Perguntas vêm à mente, e eu já ouvi diversas vezes questões como, “mas se é assim, onde começa e termina uma espécie?”, e “como um ser igual a outro, na frente ou atrás de linha, pode acabar sendo outro ser vivo tão diferente?”. “Como uma lebre se tornaria um leopardo, se a cada geração, são quase idênticos?”. “Porque então não vemos ‘elos perdidos’ por todo lado, e nos fósseis?”

Para entender melhor, vamos ver o que é na realidade uma espécie. A sempre presente árvore da vida vai nos ajudar nisso. Observe a figura abaixo, a árvore da vida e seus eixos de informação: diversidade e tempo:

Para facilitar, vamos usar a imagem de uma árvore real para visualizar o “corte” no tempo:

O que podemos notar imediatamente é que cada linha, cada galho e folha, são uma decorrência de um anterior, e que produz novos a partir de si mesmo. Não importa onde está localizado, se na folha da ponta ou no tronco, ou em lados opostos da arvora, é possível encontrar um caminho sem ter de “pular de galho” nenhuma vez, um caminho direto, entre uma folha a esquerda da árvore e uma folha a direita da árvore.

É isso que a imagem de Dawkins, com a menina humana e a menina chimpanzé na praia africana demonstra, todo ser vivo está ligado a outro, qualquer outro, por uma linha sem interrupções.

Mas então, onde estão as espécies, as evidentes divisões de seres que vemos por todo lado?

Observe que na imagem eu coloquei um “corte” plano, na altura do ano 2010, que atravessa toda a árvore. Este é um instante no tempo geológico, de bilhões de anos, da árvore toda. E como não há motivo para pensar que a árvore deixará de existir neste ano, a linha do tempo continua por mais alguns milhões de anos e a árvore a acompanha.

Agora vamos olhar “de cima” a árvore, a partir do corte (ou seja, “retirando” a copa cortada pela linha de 2010). O que veríamos seria algo assim:

Essa imagem, os “círculos” de diferentes tamanhos, espalhados por uma área que corresponde à circunferência da árvore da vida, é o que vemos em um instante de tempo. São as espécies, seres vivos em diferentes estágios de variação. Não vemos as ligações entre eles porque estas se espalham no tempo geológico, centenas de milhões de anos, mas elas estão lá.

Então, na verdade, nós realmente vemos “elos perdidos” por todos os lados, pois cada espécie é, em alguma medida, um elo entre o que foi e o que será (ou poderá ser, devido as extinções), como eu sou o “elo perdido” entre minha mãe e minha filha, e minha mãe é o elo entre meu avô e eu. Cada espécie pode ser ancestral de uma, ou mais espécies, a partir de hoje. E é o fruto de modificações de outra, anterior.

Há um alerta aqui. A variação e especiação sofrem mudanças em seu ritmo, sendo mais acentuadas quando as condições mudam, em especial de forma drástica, e menor, ou quase inexistente, quando as condições ficam estáveis. É o princípio do equilíbrio pontuado (ver Jay Gould). Veja na imagem abaixo como a árvore de espécies normalmente é desenhada, e como o equilíbrio pontuado a afeta.

Note como um tempo de estabilidade, quase sem mudanças (linhas verticais), se segue a surtos mais rápidos de mudança (linhas horizontais na figura de baixo), como quando grandes mudanças climáticas ocorrem. Mas atenção, são chamados períodos “curtos” apenas em comparação com o tempo geológico, para os padrões evolutivo, esse “curtos” significam dezenas ou centenas de milhares de anos.

Ainda assim, é difícil para nossa mente, minha mente, aceitar essa situação. Eu quero “classificar” as coisas, colocar linhas, definir alcances, etc. Quero saber “quando” um indivíduo de uma espécie se tornou outra espécie, quando o ancestral Australopiteco se tornou Homo Erectus. Tem de haver um ponto de mudança de uma espécie para outra, minha mente clama por uma linha divisória..:-)

Mas não há. Como muitas coisas neste universo, a especiação é um degrade, não uma chave de liga desliga. Em geral, para explicar isso, se usa a analogia com a gestação, uma célula se torna uma mórula, um embrião, um feto e um bebê, mas em nenhum momento existe uma linha divisória, um instante separador.

É uma boa analogia, mas como está dentro do útero, nem sempre é eficaz. Eu pensei em outra forma de ilustrar a mudança gradativa, de forma que quase todo mundo viu acontecer em sua frente.

Este é um experimento que eu gostaria de ter pensado em fazer muitos anos atrás, mas não fiz. Há 21 anos nasceu minha filha. Vamos imaginar que, no dia em que ela nasceu, eu tirei uma foto dela, de corpo inteiro. Na verdade, eu tirei, claro, mas gostaria de ter feito mais.

Gostaria de ter, a cada dia, durante os 21 anos de vida dela, ter tirado uma foto, todos os dias. Seriam 365 fotos a cada ano, e hoje eu teria 7665 imagens de minha filha. Todas as fotos da mesma pessoa, do mesmo indivíduo.

Com estas 7665 fotos eu poderia criar um painel colocando cada foto, da primeira ao nascer, a última do aniversário de 21 anos (que será logo mais). Lado a lado, imaginando que cada foto tenha 20 centímetros de largura, eu teria uma linha de 1533 metros.

Vamos andar por esta fila de fotos. Se olhar, atentamente, para uma das fotos, e em seguida para a que está à direita e a esquerda, verá, em qualquer parte dos 1533 metros, a mesma menina. Não será possível, em nenhum ponto da linha, dizer as diferenças entre uma foto e suas adjacentes. Não há maneira de perceber o crescimento, a mudança, nada, em 3 fotos contíguas.

 

Mesmo assim, o bebê na ponta esquerda, é totalmente diferente da mulher na ponta à direita em nossa linha de fotos imaginária. Sem solução de continuidade, o bebê se tornou uma mulher. Sem chave de liga desliga para nenhuma das fases por que passou. Como no caso do ponteiro do relógio, sabemos que está se movendo, mas não é possível detectar esse movimento, a não ser por comparação com a posição anterior de tempos em tempos.

Para facilitar a visualização das fotos, em vez de uma linha de 1533 metros, vamos criar faixas sobrepostas, digamos 20 faixas de 76 metros, sendo que a foto tem 20 centímetros de altura. Agora temos um painel que começa no canto a esquerda, com a primeira foto de bebê, e que termina, no fim do mural, 20 faixas acima, à direita, com a foto de 21 anos.

Imagem meramente ilustrativa, 12 meses de um bebê. :-)

Imagem meramente ilustrativa, 12 meses de um bebê. 🙂

Isso mostra algo interessante. Se olhar uma foto, e suas adjacentes, não pode ver diferença alguma. Apenas se olhar fotos acima e abaixo (faixas distintas), verá alguma diferença. Quanto mais “faixas” pular, mais diferenças.

Mas para fotos adjacentes, nenhuma “espécie” real do tipo “bebê”, “menina”, “adolescente”, “adulta”.

Na verdade, claro que existem essas categorias, e que podemos chamar de espécies os seres que são vistos em um corte temporal na árvore da vida. Espécies existem, para efeitos práticos no momento, no instante, em que cada ser vivo existe. Lobos comem lebres, e são espécies diferentes nesse sentido: neste ponto do tempo.

Mas isso pode ser dito de todo e qualquer ser vivo que já viveu, de toda e qualquer espécie. Por isso ao se encontrar um novo fóssil, ele “é” um elo perdido (a não ser que tenha se extinguido nessa forma final), e “é” uma espécie plena também. No momento em que viveu, ele era uma espécie, assim como na adolescência, minha filha era uma adolescente. Mas, como fóssil, ele também “é” um elo entre um ancestral e os seres que derivam dele hoje.

Quando se encontra um fóssil da linhagem humana, por exemplo, o que os cientistas tentam fazer é situar o mesmo no tempo, e comparar suas características com fósseis já conhecidos. Se este novo exemplar tiver características próximas de um já conhecido (equivale à foto ao lado da outra na linha de imagens de minha filha), ele será catalogado como pertencente a este ramo.

Se for diferente ou estiver em período bem distante, poderá receber um novo nome de espécie (equivale a pegar uma foto no começo da linha de imagens, e outra alguns anos depois).

Por isso ajustes sempre são feitos na classificação dos fósseis, novos dados aumentam o conhecimento dessas circunstâncias, e isso permite catalogar com mais precisão a posição do mesmo. É como pegar uma foto que “caiu” da linha de imagens nas faixas do mural e tentar, por aproximação, determinar a que lugar ela pertence. É fácil excluir os extremos, mas quando se chega perto do local, as imagens se tornam muito parecidas, dificultando a localização exata.

Quando pensarmos em evolução, e em espécies, devemos tentar nos lembrar que o conceito é apenas isso, um conceito, que tem efeitos práticos e interessantes, mas que deve ser aplicado com cuidado e dentro de um momento específico do tempo, um “corte” temporal na árvore da vida, que liga todos os seres vivos a todos os outros.

Pense em uma criança ou bebê que viu crescer, e pense em como não poderia dizer em que momento ele deixou de ser criança e passou a adolescente ou adulto. Nem quando foi que ficou velho.

Entre cada indivíduo na imagem acima uma infinidade de indivíduos quase idênticos, mas com mínimas diferenças, todos, elos no tempo e espécies plenas enquanto viveram.

 

Bônus

Em FUTURAMA, uma série animada muito irônica e sarcástica sobre nosso futuro, há uma excelente discussão sobre elos perdidos e evolução. Neste link tem o episódio completo, mas a discussão está nos primeiros segundos do vídeo, vale a pena assistir.

 

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