Liberdade e Vida em Sociedade

Liberdade é importante para seres humanos, e uma ideia central para sociedades modernas. Mas é um conceito abstrato, um construto humano que não existe na natureza ou no Universo fora da mente humana. 

E não é algo que seja ou possa ser absoluto. Nenhum construto mental humano pode, mas liberdade é mais complexa que outras ideias. Seu efeito nunca se restringe a pessoa que a exerce e isso tem sido percebido desde o início em nossa história. O ditado “sua liberdade termina onde a minha começa” é um exemplo disso.

Os caçadores-coletores natufianos eram ancestrais dos primeiros fazendeiros  da humanidade

Desde caçadores-coletores, e provavelmente antes, viver em sociedade exigiu restrições ao exercício da liberdade individual, regras que cerceiam a mesma, e claro, pressão social para aplicar esse controle. Em toda nossa história nenhum grupo ou sociedade conseguiu existir sem regras restritivas.

Grupos de primatas têm um padrão de dividir a comida que encontram. Morcegos vampiros regurgitam sangue para o vizinho, caso este não tenha conseguido sua dose diária (morcegos precisam se alimentar a cada dois dias pelo menos ou podem morrer).

Mas embora um indivíduo nessas espécies possa “escolher” não dividir comida, ou não regurgitar sangue para o vizinho que pede, isso tem um custo, pressão social para forçar a regra. Em primatas pode ser uma surra, em morcegos ele será lembrado e não terá ajuda quando precisar da próxima vez. E pode morrer por isso.

Sociedades modernas têm caminhado para cada vez mais diminuir as restrições à liberdade individual, mantendo apenas as que se aplicam à proteção de terceiros, ao dano social do grupo, focando na melhor qualidade de vida de todos.

Mesmo assim parece que muitos não compreendem isso, e adotam um conceito de liberdade individual que não existe nem pode ser praticado, sem prejudicar ou destruir a própria sociedade e a si mesmos.

Sociedades modernas, com alto grau de liberdade individual, com a melhor qualidade de vida de todos os tempos, de toda nossa história veem surgir grupos contra coisas como “cloro na água”, “flúor comunista que transforma pessoas em gays”, e, claro, máscaras e vacinas.

Eu entendo que boa parte da população mundial tem problemas de educação, instrução, informação e que muitos não compreendam questões complexas. Entendo que alguém pouco instruído acredite que flúor pode transformá-lo em gay, ou que não se vacinar é algo que só afete a ele e que ninguém tem o direito de “forçar” uma pessoa a se vacinar (ou que impedir não vacinados de ir trabalhar seja “autoritário”).

Lendo "Dom Quixote" nos dias de hoje

Mas pessoas instruídas, pessoas que eu admiro pelo trabalho de anos, pessoas que têm todas essas informações e capacidade de usá-las, também parecem derrapar nessa questão. Lutando contra moinhos de ventos, inimigos inexistentes e lutas que são “polêmicas” apenas para conspiracionistas e malucos em geral.

“Forçar alguém a usar máscaras é imoral, a liberdade da pessoa, a escolha ….”

Sociedades forçam regras. É o conceito de sociedade, e uma necessidade estrutural. Sem regras não há sociedades. Vemos isso em saques, quando falha o Estado ou o poder de polícia hoje, e vimos isso no passado, quando regras arbitrárias eram impostas pelos mais fortes ou com mais soldados. Durante toda história a busca por melhores e mais justas regras foi a constante que criou o atual avanço das leis. Em todo esse tempo nunca eliminar todas as regras funcionou, não de forma justa ou benigna, ou melhor que os sistemas atuais.

Então, o que há com o uso de máscaras, que protegem outras pessoas, que são basicamente inócuas e causam, no máximo, um leve desconforto ao usar?

Alguns me dizem que é o “princípio, que deve ter o direito de decidir se uso ou não, que despedir alguém que se recusa a usar máscara no trabalho (colocando colegas em risco) é autoritarismo sanitário”.

Onde vamos parar, dizem, se começarmos a forçar pessoas dessa forma a usar máscaras? Logo estaremos tirando órgãos de pessoas para salvar outras!

Isso me espanta. Dito por pessoas razoáveis, que considerei razoáveis, me espanta. Estou acostumado a ouvir falácias, como da ladeira escorregadia, de pessoas incultas, não de quem sabe que é uma falácia de ladeira escorregadia.

Mas porque lutar contra máscaras, inócuas, e ignorar coisas muito mais opressivas? Como empresas que EXIGEM que os empregados usem roupas? E exercem uma pressão indevida, despedindo empregados que insistem em usar sua liberdade e ir trabalhar pelados!

Parece ridículo, e é. A exigência de roupas é um dos exemplos claros de “imposição social” inócua, e que não afeta mais ninguém além da pessoa, mas que os lutadores pela liberdade simplesmente ignoram. Muito mais que uma máscara, roupas são totalmente desnecessárias, só protegem a pessoa, e não afetam terceiros. Por que essa imposição cruel?

Vacinas também tem equivalentes solenemente ignorados pelos combatentes da liberdade (os racionais, não os conspiracionistas malucos). Temos tornado sociedades melhores, mais seguras, com menos mortalidade infantil com vacinas a 2 séculos. Se tornou um consenso em sociedades civilizadas a necessidade, a importância, e principalmente o efeito para proteção de todos a cobertura vacinal. A mortalidade infantil que sempre foi de 50% despencou para menos de 0,8%, menos de 8 em mil.

Mas não é a única “coisa introduzida em nossos corpos sem termos escolha”. Ficando nos mais conhecidos, cloro e flúor na água, iodo no sal. Não temos mais bócio graças ao iodo no sal. Doenças mortais desapareceram por causa do cloro na água. Menos cáries e menos perda de dentes devido ao flúor.

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Comemos pão feito com fermento químico, refrigerantes com estabilizantes diversos, doces com ácido esteárico para que fiquem brilhantes, glicerol, sorbitol, lactato de sódio para impedir que alimentos percam a umidade, e isso apenas nos não essenciais, tem uma diversidade que nos protegem de doenças e infecções. Sim, menos seria interessante para a nutrição, mas não vemos a mesma histeria contra tudo isso como nas vacinas, ninguém tendo chiliques sobre “minha liberdade de não comer fermento químico, minha escolha contra doces coloridos sem minha autorização!”.

Por que pessoas esclarecidas, que entendem tudo isso, lutam contra vacinas, mas não contra o iodo, cloro, flúor e outros elementos “inseridos sem nossa escolha em nossos corpos”? 

Vacinas são injetadas. Medo de agulha poderia ser uma explicação? Mas lutam contra as gotinhas da Sabin contra pólio tb. As vacinas têm efeitos colaterais, alguns graves, mas são em menor número que os de Dipirona, ou mesmo que iodo ou flúor. E vacinas são aplicadas uma ou poucas vezes, e cloro todos os dias, em toda água que se bebe. Iodo idem.

Eu acho que é simbólico. E que é mais fácil agregar adeptos lutando contra máscaras e vacinas do que contra roupas e água tratada. Adeptos de baixa qualidade, seguidores conspiracionistas (“é isso aí, estou com você, e deve falar também da Farsa a Lua, esse engodo!”) mas adeptos.

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Regras. E modos de forçar seu cumprimento, é a base de toda sociedade, mas especialmente das civilizadas. O alcance e rigor está em aberto, em discussão, e diferentes sociedades colocam seus limites em posições diferentes, mas todas precisam ter.

Sim, existem sociedades autoritárias, mesmo que não ditatoriais. Mais rígidas com regras que afetam apenas o indivíduo e sou totalmente a favor de combater esse autoritarismo. Se algo afeta apenas a pessoa, não é função do Estado regrar esse comportamento (como ir pelado trabalhar, ser gay, canhoto ou gostar de funk). Sociedades que colocam mulheres dentro de sacos são piores que as que permitem que estas escolham se QUEREM estar dentro de sacos (burca) ou se querem usar biquíni (ou ficar nua em praias). 

E não pelo tipo de regra, mas sim pela possibilidade de escolha. Não, não é o mesmo que “escolher” vacinar, porque não usar roupas afeta apenas a pessoa e não vacinar afeta a sociedade.

Não é uma boa sociedade uma que se coloca acima dos indivíduos, da individualidade, de forma absoluta, um dos problemas centrais do comunismo. Mas igualmente não é uma boa sociedade a que coloca o indivíduo acima da sociedade, de forma absoluta. Um dos problemas centrais do capitalismo selvagem (que, é preciso sempre lembrar, NÃO existe mais em lugar algum do mundo, mesmo os USA tem centenas, milhares de regras restritivas que protegem a sociedade antes do indivíduo).

Um funcionário público atende mais de 50 pessoas em um dia em um guichê. Convive com dezenas de colegas todo dia. Viaja em ônibus lotado todo dia. Exigir, ter regras, que ele se vacine, ou não possa trabalhar, é uma regra social necessária, especialmente no meio de uma pandemia. NÃO significa que daqui a pouco vão tirar os órgãos dele para dar a outros. Na verdade, provavelmente com o fim da pandemia as exigências sejam revistas e diminuídas. Sempre foi assim, em 200 anos.

É como alegar que, se prendem assaltantes hoje, logo estarão prendendo gente que para em fila dupla, ou que falam alto nas filas. Ou que se diminuímos penas de uso de drogas ou descriminalizar a cannabis, logo as pessoas serão forçadas a consumir cocaína (lembra a velha piada, “do jeito que vai esse negocio de tolerância, ser gay vai ser obrigatório logo mais” – que para alguns não é piada).

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Em momentos de crise é preciso mais esforço conjunto, mais sacrifícios e mais colaboração, e parte dessa colaboração envolve ceder em alguns pontos. Não é ataque a liberdade individual, é estado de necessidade e nessas situações pressão social é legítima. 

Fazemos pressão social, forte, para que pais vacinem seus filhos e os levem a escola. Fazemos pressão social para que cidadãos não criem animais em condições insalubres de forma a colocar em risco a saúde pública e os vizinhos. Não é autoritarismo, ainda que seja exercício da autoridade.

A triste realidade dos animais de um acumulador - MYPETPRINCE

Se seu vizinho cria cães, e em condições que moscas proliferem a ponto de tornar insegura a sua vida ao lado, você chama, tem o direito de chamar, a vigilância pública para que tome providências. Com uso da força se necessário. Empregados fazem exame de saúde para a admissão. Empregadores podem pressionar que cozinheiros com doenças infecciosas se tratem ou se protejam.

Não há sociedades sem regras e leis, e regras e leis são, em boa medida, restritivas. Inclusive restritivas de “liberdades” e não há alternativa razoável ou eficaz a isso.

Um empregado pode desistir de um emprego em que tem de se vacinar. Sim, é difícil, e na atual situação complicado arrumar outro, mas a vacina é uma forma simples de ceder, colaborar, e proteger outros colegas além de manter o emprego. 

Idem para máscara. Um empregado que exija ser mantido no emprego e que o empregador forneça “água sem cloro e sem flúor” para ele, ou que permita que vá pelado trabalhar, em nome de sua “liberdade individual” seria ridicularizado. O mesmo deveria ser feito com gente que tem chilique por ter de usar uma máscara ou se vacinar para manter o emprego (e a segurança do grupo).

Como eu disse, entendo negacionistas incultos e sem noção, gente da Terra Plana, da farsa a Lua etc sendo contra máscaras e vacinas (e pressão para seu uso e vacinação pela pressão social), mas fico espantado com gente que pode entender a complexidade do problema, os desdobramentos, as regras sociais, e ainda assim luta contra moinhos de vento imaginários.

2 comentários sobre “Liberdade e Vida em Sociedade

  1. Sobre cooperação, acho muito bom o Mutualismo: um Fator de Evolução, do Kropotkin. Mesmo que alguns exemplos não estejam mais necessariamente certos do ponto de vista da biologia contemporânea, a lógica básica segue válida.

    O Pirula tem um vídeo em que ele mostra os estudos sobre crença em teorias de conspiração. A conclusão é que a inclinação a acreditar não tem correlação com escolaridade (haja vista a multidão de médicos cloroquiners).

    Sobre autoritarismo e capitalismo/comunismo, acho uma análise simplória. O capitalismo gera uma certa liberdade para alguns em algumas circunstâncias fazer algumas coisas, mas Japão, Coréia do Sul e Arábia Saudita são países capitalistas, ricos e mesmo assim são sociedades estreitíssimas.

  2. Obrigado por comentar.

    Sim, são mais rígidas. Mas não deve confundir capitalismo e comunismo, dois sistemas econômicos em sua base, com culturas. O Japão vem de uma cultura tradicional conservadora, e o efeito do capitalismo em sua sociedade não pode mudar isso, embora a cultura americana possa (e tem mudado as novas gerações bastante).
    Já a Arábia Saudita é uma teocracia, que adota uma versão própria do sistema econômico que chamamos capitalismo. Sem separação igreja/estado e submetida a uma casa real, ela está mais para feudalismo que capitalismo.
    São questões, claro, complexas, e minha alegação se restringe a forma como esses dois extremos lidam com a dicotomia, liberdade individual versus funções e estruturas sociais.

    Um abraço.

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