A Afiada Navalha da Ciência

Guilherme de Ockan

Uma das ferramentas lógico/racionais mais importante da ciência nem sempre é bem compreendida. Conhecida como Navalha de Occam (ou Ockam), essa ferramenta ganhou seu nome graças ao trabalho intelectual de um frade franciscano chamado Guilherme de Occam (1). Este frade é as vezes chamado de o “último pensador medieval”, e as vezes de “o primeiro pensador moderno” e ambas as afirmações são corretas em alguma medida.

A vida de Occam, mesmo sendo um frade franciscano, não foi fácil, e seu modo de pensar muito particular, e racional demais para o ambiente, rendeu diversas escaramuças com a Igreja e o Papa, e até uma excomunhão. Mas é mais lembrado hoje que o Papa que o excomungou, por mérito de sua mente brilhante.

De modo geral a Navalha de Occam é conhecida dessa forma:

“Entre duas explicações que igualmente satisfatórias de um fato, a mais simples deve ser a correta.”

A proposição da Navalha feita dessa forma simplificada é útil, mas sua forma original é mais precisa e menos passível de erros de interpretação. O engano mais recorrente com relação a essa forma da Navalha é a supressão do termo “igualmente” da proposição. Ou seja, a explicação mais simples deve ser a correta, em qualquer situação.

Outro engano comum, em geral somado ao anterior, é a supressão ou substituição do termo “deve ser” por “é”. Isso resulta em uma alegação bastante enganosa, que é usada como “espantalho” (ver falácia do espantalho (2)) ao se atacar a ferramenta da Navalha. E a Navalha, originalmente uma alegação muito eficaz e lógica, se transforma nisto.

“A explicação mais simples é a correta.”

Isso é tão obviamente errado, que qualquer pessoa percebe que não pode ser aceita. Mais ainda, quase toda descoberta ou conclusão da ciência parece indicar exatamente o contrário, explicações mais complexas são em geral as explicações corretas.

Antes de explicar o que aconteceu  e como as duas expressões acima diferem em sua estrutura e natureza, vamos ver como era a navalha em sua origem. A Navalha de Occam também é conhecida como Princípio da Parcimônia ou Princípio da Economia:

“Entia non sunt multiplicanda praeter necessitatem”.

Em latim fica mais impressionante, mas o significado é simples, não se devem multiplicar os elementos sem necessidade. O que pode ser explicado com dois elementos, não precisa ser explicado com 5 elementos. E uma forma bem prática de compreender o princípio é aplica-lo a um sistema concreto, um mecanismo.

Se um mecanismo tem 3 peças, para uma determinada função, e outro tem 36 peças, para a mesma função (em muitos casos, as 3 do primeiro mais 33 peças extras), qual dos equipamentos tem maior chance de apresentar defeito? Em outras palavras, se uma das 3 peças do primeiro equipamento apresentar defeito, ambos terão defeito, mas se qualquer das peças extras do segundo equipamento apresentar defeito, apenas este apresentará defeito. É mais seguro, portanto, para equipamentos que são igualmente eficazes, usar o de menor peças (3).

O mesmo serve para argumentos, teorias, explicações, etc. Se um argumento usa 3 elementos, e resolve a alegação, e outro usa 36 elementos, para resolver o mesmo, a chance de encontrarmos um erro de lógica ou coerência no segundo, dada sua natural complexidade, é maior. E se ainda por cima  os 3 elementos básicos se repetem no modelo mais complexo (sendo os outros 33 desdobramentos deste), se encontrarmos um erro no primeiro argumento, em um destes 3 elementos, então o segundo argumento também estará errado. É mais confiável, mais lógico, adotar o argumento com menos elementos (complexidade).

Mas, e agora talvez comece a ficar claro os enganos cometidos ao se criar o espantalho da Navalha, essa aplicação da ferramenta de Occam tem suas exigências e limitações. A exigência é que ambos argumentos, teorias, equipamentos, ou o que for, sejam igualmente capazes de resolver ou solucionar o problema. É evidente que, se o argumento ou teoria ou equipamento mais complexo, com mais partes, resolve melhor a questão, explica com mais sucesso ou mais abrangência, ou finaliza sua função com vantagem (por exemplo, um martelo prega pregos tanto quanto um revolver de pregos, mais complexo, mas este o faz mais rápido, mais eficazmente, mais confiavelmente, e em mais situações, onde o martelo não consegue atuar), a Navalha não se aplica.

A Teoria da Relatividade é complexa, matematicamente complexa, fisicamente complexa, e difícil de ser compreendida pela mente humana sem esforço e dedicação. Mas, entre as teorias que podem explicar o que ela consegue, com a abrangência que ela consegue, com a eficácia que ela consegue, não há nenhuma mais simples, com menos elementos.

A Teoria Gravitacional de Newton, a física clássica, por exemplo, é mais simples que a relatividade. E quase qualquer um pode compreender, com algum estudo, a física newtoniana. Infelizmente, ela falha em explicar aspectos e fenômenos do universo, que apenas a relatividade consegue. Portanto, não podemos aplicar a Navalha nestas teorias e escolher a mais simples, já que não são “igualmente” satisfatórias como explicação e conclusão.

É fácil entender agora como eliminar o termo “igualmente” distorce a Navalha de Occam.

Da mesma forma, a Navalha tem limitações, implícitas no “deve ser” de sua formulação mais simples. Uma explicação mais simples deve ser a correta, e escolher a mais simples é mais seguro. Mas isso pode não ocorrer, e a mais complexa (com mais elementos) pode, as vezes, ser a correta. A Navalha é uma ferramenta a ser usada com cuidado, preferencialmente quando muitos dados e evidências estão disponíveis, e a partir de muitos estudos e confirmações, para que o “igualmente” seja o mais confiável possível.

Dessa forma, a Navalha não garante 100% de certeza, garante apenas que, dentro das probabilidades, você ganhará mais vezes usando a Navalha que não usando. Pense em um programa de auditório, em que você é levado a escolher entre proposições e explicações, e ganhar ou perder dinheiro com as respostas. Se usar a Navalha de Occam, ganhará sempre mais do que perderá, embora as vezes, perca alguma coisa.

Diferente de programas de auditório, mesmo quando se “perde” algo ao usar a Navalha, na ciência é possível recuperar ou refazer as escolhas no futuro. Isso significa que, depois de pesquisar por mais dados, uma conclusão incorreta pode ser ajustada, melhorada, e novamente passar pela Navalha, agora com mais confiança e precisão na resposta. Por isso a Navalha é considerada uma das mais eficazes e importantes ferramentas lógicas da ciência e do método científico. Por isso para ignorar a Navalha ao se escolher uma conclusão científica, é preciso que fortes razões sejam apresentadas. Do contrário a alegação não será aceita, pelo menos naquele momento. E no futuro, se evidências surgirem, como no caso da microbiologia, a alegação será reavaliada e aceita, se for o caso.(4)

Mesmo sem conhecer o conceito da Navalha de Occam, nós a usamos em muitas situações diárias. Mentirosos sabem, quase instintivamente, que elaborar uma mentira mais simples, é mais seguro para convencer alguém de sua veracidade. Mentiras muito complexas, com muitos elementos, costumam despertar nossa suspeita. É nossa “navalha” interior nos alertando que, em termos probabilísticos, aquilo tem muita mais chance de ser enrolação..:-)

Todo engenheiro sabe que, quanto mais peças um equipamento tiver, maior a chance de erro ou defeitos. Teorias simples costumam ser mais resistentes a refutações, pois é menos provável que seu criador tenha deixado passar algo muito evidente.

Mas, é preciso sempre, sempre, usar a navalha como foi projetada, completa, com sua estrutura intacta. As teorias, ou equipamentos, em competição devem, igualmente, solucionar o problema ou fazer o mesmo efeito. Uma teoria mais simples que a relatividade precisa ser capaz de explicar tudo o que a teoria da relatividade explica, e não apenas uma parte. Ser mais simples não é tudo. E a navalha deve cortar sempre dentro do entendimento da probabilidade, não da certeza. É mais seguro, como todo conhecimento científico, não a verdade absoluta ou uma garantia de 100% de certeza.

Homero Ottoni

1 – No livro, fantástico e altamente recomendável, O Nome da Rosa, o autor Umberto Eco nomeia seu personagem/herói em homenagem a Guilherme de Occam. O monge que investiga os assassinatos no mosteiro se chama Guilherme  (interpretado por Sean Connery na versão para cinema, muito boa também).

2 –  Para saber mais sobre a falácia do espantalho acesse a Wikipedia http://pt.wikipedia.org/wiki/Fal%C3%A1cia_do_homem_de_palha

3 – Engenheiros gastam boa parte de seu tempo tentando fazer com que equipamentos usem o menor número possível de partes móveis, para um mesmo propósito, para minimizar ao máximo a chance de defeito ou mal funcionamento do conjunto.

4 – Inicialmente, quando a teoria da microbiologia foi proposta, como muitas alegações hoje aceitas pela ciência, a explicação mais simples era outra. Seres vivos invisíveis capazes de causar doenças em seres humanos, e até mata-los de forma inexplicável, era algo bem difícil de acreditar ou aceitar, uma verdadeira afirmação extraordinária. Aplicada a Navalha, não se podia aceitar a alegação e com razão. Explicações mais simples, com menos elementos, como miasmas maléficos, ou “humores” desregulados eram mais aceitáveis. Mas com o tempo evidências se acumularam, dados e fatos surgiram, dados e fatos que precisavam ser explicados, e para os quais as explicações aceitas, como miasmas maléficos, não eram suficientes. Ou seja, os novos dados e fatos tornaram as duas explicações, micróbios invisíveis e miasmas maléficos, diferentes, não mais igualmente satisfatórias, e a melhor explicação, a Microbiologia, foi aceita pela ciência. As ferramentas da ciência, do método científico, permitem revisar suas conclusões e idéias, de forma a melhorar sua precisão e acerto, algo que não existe em outras áreas de atividade humana.

Deixe um comentário